
58º Brasília (2025) – Corpo da Paz
Filme de Torquato Joel conecta a Guerra Fria à crise do algodão no sertão paraibano.
Por Marcelo Ikeda | 18.09.2025 (quinta-feira)

– Este texto contém spoilers
Torquato Joel é um dos maiores nomes de toda uma geração do cinema paraibano, que começou a fazer seus primeiros curtas em 35mm na década de 1990, junto com Marcus Villar, entre alguns outros. Dadas as descontinuidades das políticas públicas de incentivo ao cinema brasileiro e à falta de apoio contínuo aos fundos de cinema, em especial em estados de menor potencial financeiro, como a Paraíba, Joel – assim como outros talentosos realizadores nordestinos – somente conseguiu realizar seu primeiro longa-metragem na década de 2010, com Ambiente familiar (2018). Mas Joel não ficou parado ou se lamentando, mas continuou ativo, no exercício de seu cinema possível, seja com diversos curtas-metragens (como o excepcional Pulmão de Pedra [2023]) seja com um importantíssimo trabalho de formação, com cursos e laboratórios de cinema no interior da Paraíba (projetos Viação Paraíba e Jabre), estreitando laços com novas gerações do cinema paraibano.
Todo esse percurso se faz presente em Corpo da Paz. Esse filme parte de uma premissa sociopolítica original e instigante. Na década de 1960, os Estados Unidos enviaram voluntários para atuar em países em desenvolvimento. Esse programa foi um dos braços da Aliança para o Progresso, um programa criado por JFK para promover o desenvolvimento econômico e social da América Latina e conter o avanço do comunismo.

O sertão como palco de repressão familiar, religiosa e descoberta do desejo
Joel reuniu esse fato com outro acontecimento local. Na década de 1980, a praga do bicudo destruiu a plantação de algodão, especialmente no interior da Paraíba, um dos maiores produtores do país. Ainda que a comprovação não seja plena, as hipóteses hoje mais aceitas pelos pesquisadores é que a praga tenha sido trazida por americanos, gerando um grande declínio da produção algodoeira no Nordeste e em outros polos do Brasil.
Joel toma como ponto de partida esses dois fatos históricos para promover uma curiosa ponte com o presente, num momento em que nossa soberania nacional tem sido ameaçada, e que setores brasileiros da extrema direita defendem uma aliança com a direita norte-americana.
Dessa forma, sob o pano de fundo da guerra fria, um pesquisador norte-americano chega ao sertão da Paraíba para fazer pesquisas sobre a natureza local, supostamente para criar mecanismos de auxílio a um país em desenvolvimento. Mas quando o pesquisador secretamente espalha o pó que simboliza a praga pelas plantações de algodão, Joel está querendo apontar para algo além: a pulverização de outros modos de ser, que esmagam a natureza do interior brasileiro.
Mas o que mais surpreende é como o filme mostra a presença desse estrangeiro: em vez de palavras de ordem e de uma política didática, o filme provoca um estranhamento, pois nunca sabemos muito bem as motivações desse estrangeiro, que permanece quase mudo, acontuado pelo fato de não conhecer bem o Português. Corpo da Paz é um filme lacunar, com amplas elipses, valorizadas pelo criativo trabalho de montagem de Diego Benevides, que busca um distanciamento do espectador por meio de um estilo rigoroso, quase minimalista, acentuado pela belíssima fotografia em preto-e-branco de Rodolpho de Barros, com poucas palavras, acentuado por um potente trabalho sonoro que complexifica essas relações (a importância do desenho sonoro como elemento de dramaturgia é uma vertente de toda a obra de Joel). A mise en scène nunca é meramente realista: exemplo disso é quando o estrangeiro bate duas pedras em suas mãos, e o som vai se amplificando, reverberando de formas misteriosas ao longo da paisagem do amplo sertão.
Em paralelo a esse enredo, vemos o cotidiano do menino Teobaldo, uma criança que vive em uma típica família do interior paraibano: o pai, ausente; a mãe, reprimida pela Igreja. Teobaldo tem seus desejos sexuais de autodescoberta do seu corpo reprimidos pela visão tradicional da Igreja, que busca adestrar corpos e mentes. Ao mesmo tempo, tudo se transforma quando seu irmão mais velho chega da cidade – e percebemos que o irmão vem participando da luta política contra a ditadura. Joel, num recurso autobiográfico, mostra como a praga do algodão não é suficiente para amordaçar o potencial de um jovem comunista, que está ali a desabrochar. Ainda que o algodão sucumba, há algo ali a desabrochar: o espírito de um jovem comunista. A libderdade está na expansão do desejo de corpos e mentes, para além das instituições repressoras (o estrangeirismo, a Igreja, a família).

Do voluntariado americano ao bicudo: quando história e política se entrelaçam
A sequência final é bastante sugestiva: o menino se vinga do americano plantando uma armadilha, em frente à Igreja. Essa brincadeira de criança se torna uma aventura revolucionária. Vemos a situação no extracampo, pelos olhos da criança. Teobaldo já pode brincar com seu amigo e plantar armadilhas para o inimigo. E de repente o filme acaba, deixando o espectador atônito. Alguns espectadores presentes se queixaram da falta de um ato final que amarasse as duas pontas. Mas creio que o mérito do filme é justamente esse: acabar o filme na tomada de consciência do menino, independentemente do futuro desse americano. A atualidade dessa reflexão sobre o americanismo no Brasil de hoje é surpreendente, uma vez que o projeto do filme foi amadurecido durante muitos anos. A isso dá-se o nome de sincronicidade histórica.
A meu ver, apenas uma ressalva mais direta: a cena em que Corpo da paz retrata a tortura do estudante. Para um filme com tantas elipses e sutilezas, creio ser desnecessária a cena em que a tortura é apresentada de forma explícita. Pois acredito que o foco do filme não é a tortura, mas sim as projeções da luta no imaginário do menino Teobaldo.
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