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Festivais

58º Brasília (2025) – Nimuendajú

Filme de Tania Anaya revisita a vida de Nimuendajú, mas reforça uma narrativa branca e eurocêntrica

Por Marcelo Ikeda | 20.09.2025 (sábado)

– Este pode conter spoilers 

Depois de sua estreia no prestigioso Festival de Annecy e depois de um longo processo de realização que durou mais de 10 anos, finalmente o aguardado primeiro longa-metragem de Tania Anaya tem sua primeira exibição no Brasil na Mostra Caleidoscópio do Festival de Cinema de Brasília.

Seu filme é uma biografia do etnógrafo de origem alemã Curt Unckel, nomeado como Nimuendajú, considerado o maior especialista em povos indígenas da primeira metade do século XX, e sua contribuição seja na pesquisa sobre as identidades indígenas seja no processo de luta da sobrevivência dessas nações diante da cobiça dos fazendeiros brancos locais. Entre suas principais contribuições, está na elaboração do mapa etno-histórico, elaborado artesanalmente, que, segundo o IPHAN, é “uma síntese definitiva de uma vida inteira dedicada ao estudo das línguas e culturas indígenas”. O mapa foi um instrumento fundamental para a demarcação dos territórios indígenas, protegendo-os da invasão dos fazendeiros locais.

Anaya optou por uma animação em estilo artesanal, o que consumiu sucessivas prorrogações no cronograma devido a questões orçamentárias e um longo tempo de maturação desse projeto. O filme é fruto de exaustivo processo de pesquisa, com visitas e filmagens nas comunidades indígenas locais, que posteriormente foram retrabalhadas por meio de um estilo de animação artesanal. A base (quadros inicial e final) foi construída a partir da rotoscopia em cima do material filmado, e os entremeios (8 quadros por segundo) foram criados a partir de animação 2D. No debate, Anaya se revelou influenciada pelo traço de Egon Schiele, cujo estilo cria uma relação de contraste entre figura e fundo para reforçar a fragmentação e a expressividade das personagens retratadas. É nítido o cuidado e a delicadeza da diretora e de toda a equipe de realização em torno da questão da salvaguarda dos povos originários brasileiros e sua relação com um processo histórico de sucessivas tentativas de aniquilamento em nome da ganância e da ignorância.

Em “Nimuendajú”, povos indígenas surgem como objetos de estudo, sem protagonizar suas próprias lutas.

Por outro lado, o estilo de biografia escolhido privilegia uma visão clássica da história, com uma organização a partir da cronologia linear, num formato narrativo clássico, inclusive com narração em voz over, calcado em informações. O filme cresce nos instantes em que a poética contamina o filme, como nas transições de respiro em vermelho, ou nos momentos em que mergulha nas culturas indígenas e na vivência com as comunidades.

É curiosa a opção da diretora por um olhar externo europeu. Novamente vemos essa história contada a partir do ponto de vista do branco colonizador simpático às causas indígenas, mas apresentando-o sem grandes paradoxos ou questionamentos. Questões complexas, como seus vários casamentos com mulheres indígenas locais ou a fundação de museus com artefatos indígenas na Europa são apresentados sem maiores questionamentos éticos. Apesar de bela e bem-intencionada, a narrativa criada por Anaya para apresentar seu herói branco retira dos povos indígenas a autonomia de seus processos de luta e sobrevivência e transfere para um “salvador branco europeu” sua supremacia. Acaba se revelando uma visão anacrônica da história seja em termos da construção de sua narrativa histórica (o que Pierre Bourdieu chamava de “ilusão biográfica” em torno de uma proposta totalizante, unificada e coerente, que ignora as complexidades das estruturas sociais que afetam os fatos sociais) seja em termos de seu olhar para o próprio processo de lutas da construção de uma identidade nacional. As comunidades indígenas surgem no filme como meros objetos do olhar branco externo, sem que estejam diretamente engajadas em seus processos de luta emancipatória. Nesse sentindo, o filme possui não apenas uma visão de história tradicional mas uma visão sobre a antropologia e sobre a etnografia extremamente conservadoras. Uma possível contra-argumentação seria a de que o filme apenas documenta processos históricos do início do século XX, baseando-se na premissa de que “no passado era assim”. No entanto, é importante notar que o filme não se limita a registrar; ele reforça essas construções. Em vez de propor uma problematização crítica, a narrativa clássica e linear do filme as ratifica. Desse modo, mesmo que bem-intencionado e delicado, o filme infelizmente se revela ao final não apenas didático e clássico mas profundamente moralizante e conservador, pois acaba reafirmando (perpetuando, legitimando) a perspectiva colonizadora.

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