
Queer
Na solidão do desejo
Por Yuri Lins | 12.12.2024 (quinta-feira)

A certa altura de Queer (EUA, 2024), surge uma cena que sintetiza tanto as potências quanto as fragilidades do filme. Ela se passa em um cinema no México dos anos 50, onde Lee (Daniel Craig) e seu affair, Eugene (Drew Starkey), assistem a Orfeu (1950), de Jean Cocteau. Na sequência exibida, Orfeu (Jean Marais) encara seu reflexo em um espelho, que, ao primeiro toque de seus dedos, se ondula como se sua superfície fosse feita de uma substância maleável, prontamente capaz de se transformar em um portal mágico para o reino dos mortos. Epítome de um cinema onírico, o efeito especial da cena foi engenhosamente construído com um espelho d’água que, graças à posição da câmera e à precisão dos gestos, cria a ilusão de estar verticalmente disposto diante do personagem enquanto ele se aproxima.
Lee é um flâneur de meia-idade, errante pela cidade em busca de aventuras com homens mais jovens. No entanto, seu desejo vai além do simples sexo casual; por trás dessa busca, há uma necessidade mais profunda de conexão, uma tentativa de preencher um vazio que, com o tempo, parece se alastrar dentro de si. Eugene, por sua vez, desde o primeiro olhar, é quem captura os sentidos de Lee, lançando-o em uma berlinda sentimental. Sua entrega, porém, nunca é plena; é sempre medida, por vezes apática, frequentemente esfíngica, mantendo Lee à mercê de uma ambiguidade que o imobiliza e o atrai simultaneamente.
Diante da cena projetada, Lee não está absorvido pela genialidade de Cocteau; seu olhar está completamente fixo em Eugene, cada fibra de seu corpo ansiando pelo toque do jovem. Eugene, por outro lado, permanece inteiramente imerso no filme, alheio ao desejo que transborda de Lee. É nesse espaço de impossibilidade – o limite que não pode ser ultrapassado sem o consentimento do outro – que as diferenças entre eles se tornam evidentes e a imagem rompe com o realismo. Em um jogo de sobreposições, projeta-se o desejo de Lee: seu braço, translúcido e onírico, contrasta com seu corpo físico, atravessa a barreira dos corpos e toca o rosto, os cabelos, os lábios de Eugene, acariciando-os com um fervor contido, para, logo em seguida, retornar à realidade.

A busca constante de Lee por novas experiências, como um flâneur errante em seu próprio desejo.
O desafio que Luca Guadagnino (diretor de Call Me By Your Name) propõe — ideia enfatizada pela referência nada casual a Cocteau — é explorar o aparato cinematográfico e suas possibilidades pictóricas para revelar as chamas que ardem nas camadas mais profundas do ser. Enquanto Cocteau trabalhava com efeitos práticos, Guadagnino conta com a potência da técnica digital de efeitos especiais e edição, ampliando o alcance das imagens e sons. Mais do que isso, o material de Queer, adaptação do icônico livro de William S. Burroughs, figura central da geração Beat, oferece uma prosa lisérgica, uma escrita capaz de incitar um cineasta a buscar maneiras de materializar, em imagens e sons, as transcendências que a palavra literária apenas sugere.
O artifício da sobreposição de imagens é utilizado de forma recorrente na primeira metade de Queer. Sempre que o desejo de Lee se torna insuportável, ele se projeta na tela por meio da ruptura do realismo, rompendo as barreiras da realidade com a intensidade de sua vontade. Porém, essa não será a única estratégia de Guadagnino para lidar com o simbólico. Para ilustrar o vaivém ansioso de Lee em suas tentativas de estabelecer conexões com outros homens, a edição recorre a cortes rápidos, que se acumulam e se chocam, criando uma sensação de urgência e inquietação. A velocidade é incessante, mas se quebra no momento em que Lee, arrebatado por seu cotidiano, genuinamente se fascina por alguém. Nesse instante, a montagem desacelera, e a imagem se estende em câmera lenta, recusando-se a abandonar a preciosidade do momento; a pausa capturando a intensidade do olhar e o instante em que a paixão se materializa, imortalizando a fragilidade e o ardor de sua entrega.
No seu melhor, Queer alcança um equilíbrio delicado entre o registro realista e as invenções da imagem e suas articulações. O espaço entre Lee e Eugene transforma-se em um território de tensão constante, onde Lee oscila, incapaz de se fixar, enquanto Eugene ergue uma barreira de silêncio e esquiva. A iminência do contato físico é frequentemente obscurecida pelo risco de jamais se concretizar. No entanto, quando o toque finalmente ocorre, é profundamente catártico. Guadagnino filma com uma paciência quase documental os caminhos que levam ao entrelaçamento dos corpos, capturando a tensão crescente e a liberação que surge com essa conexão física, como se cada gesto fosse inevitável ao curso do destino. A chegada do real, com toda a sua fisicalidade, adquire uma nova potência pelo percurso que antes só existia na construção imaginária. A ausência da união dos corpos era preenchida pela fantasia, mas quando ela finalmente se materializa, dá lugar a uma nova forma de fabulação: aquela que se desenrola no presente absoluto, no ato em si do sexo, emanando dos poros dos personagens, por onde respira o desejo de se fundir à carne do outro e navegar em seus fluidos como se o amanhã não existisse.

A metamorfose do desejo, o espaço entre o imaginado e o vivido.
Todavia, o ponto mais frágil do filme ocorre justamente quando a realidade cede totalmente lugar à fantasia. Se, até então, a fabulação funcionava como a luz projetada em um espelho, que refrata e torna mais evidente a realidade, ao adotar de forma mais frontal o surrealismo, algo se perde. Um dos maiores desejos de Lee é alcançar uma forma de comunicação que prescinda dos corpos e do ego, uma telepatia capaz de conectar as almas sem as barreiras impostas pela norma. Para isso, ele convence Eugene a acompanhá-lo até a floresta amazônica, em busca da ayahuasca, uma substância que ele acredita ser capaz de proporcionar a experiência transcendental que tanto almeja. A viagem e o consumo do chá lisérgico será o portal pelo qual Guadagnino poderá criar as imagens mais mirabolantes que o seu orçamento permite; corpos dançam e se penetram, corações que são expelidos pela boca, noites que avançam como a escuridão antes do nascer da luz primeira; toda a expiação de tudo o que se recalca.
O grande problema do filme não é, necessariamente, o balé psicodélico que Guadagnino constrói – que, mais uma vez, explora suas possibilidades com esmero. O ponto crítico surge quando o filme tenta abordar a passagem do tempo na vida dos dois personagens. Sabe-se que, no cinema, uma elipse é uma técnica narrativa que omite uma parte do tempo ou da ação, criando a sensação de uma passagem temporal ou espacial sem mostrá-la diretamente. Nesse momento, a narrativa busca alinhar as limitações de cada um – a velhice que avança, os desejos que se contraem –, mas, em vez de adotar uma estrutura elíptica mais sugestiva, que deixasse os intervalos de tempo eclipsados entre as imagens, criando um espaço de transição que só poderia existir na mente e no espírito do espectador, o filme opta por preencher esse vazio com imagens de alta carga simbólica e surrealismo que tentam explicitar o que, no fundo, seria mais potente se permanecesse implícito.

No êxtase da ayahuasca, as fronteiras entre os corpos se desvanecem, acessando as profundezas das almas com uma mistura de terror e fascínio.
Há uma cena crucial que evidencia essa questão. Após a imersão na ayahuasca, com todo o onirismo que ela proporciona, os personagens decidem deixar a floresta e retornar aos seus mundos. No entanto, a experiência não foi exatamente como Lee imaginava. Se, no êxtase da ayahuasca, houve a sua tão sonhada telepatia, ao retornar à realidade, a barreira entre ele e Eugene permanece – talvez até mais intensa e opressiva. De maneira abrupta, da floresta, Lee é literalmente catapultado para as estrelas, sua figura reduzida a um astronauta sem rumo, flutuando na vastidão do espaço. Ele vagueia pacientemente, sem referências, até ser subitamente trazido de volta à Terra, ao México dos anos 1950, onde se revela que alguns anos se passaram. A cada nova passagem de tempo, uma imagem semelhante surge na tela, acompanhada de uma crescente sensação de cinismo deliberado, como um artifício que se impõe pela ostentação de sua técnica e possibilidade. O peso dessas transições, que deveria ser sentido de forma tão íntima quanto a contemplação de uma elegia, se perde na atrofia perpetrada por um realizador excessivamente satisfeito consigo mesmo.
Cocteau, com o seu Orfeu, afirma que o cinema é capaz de registrar a morte trabalhando (“le cinéma c’est la mort au travail”); pode-se entender isso como a ideia de que uma imagem, como registro de um momento, se torna a evidência do que desaparece logo em seguida. No entanto, como os grandes cineastas já ensinaram — Cocteau entre eles —, a morte que trabalha não se revela nas imagens evidentes, mas nos espaços entre elas: no instante em que, ao piscar dos olhos, um rosto já não é o mesmo; no momento exato em que um suspiro se concretiza e se perde; no silêncio que surge quando uma sílaba se cala. O cinema, como arte, nos lembra constantemente que estamos sempre a perder algo.
Em outras palavras, citar Cocteau não significa, necessariamente, compreendê-lo.
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