
58º Brasília (2025) – Assalto à Brasileira
Belmonte reinventa o filme de assalto com humor e crítica
Por Marcelo Ikeda | 19.09.2025 (sexta-feira)

– Este pode conter spoilers
A seleção deste filme de José Eduardo Belmonte surpreendeu a muitos dos críticos presentes neste Festival de Brasília. Não propriamente pela presença de Belmonte, um cineasta brasiliense com enorme identificação com o Festival, mas pela própria proposta do filme, um produto tipicamente comercial com valores de produção e códigos estéticos que contrastam frontalmente dos demais filmes exibidos neste evento. Um filme que nos parece ser muito mais de “produtor” do que um filme de “diretor”.
Mas não seria esse um preconceito do campo cinematográfico em relação ao cinema comercial? Ora, a própria Cahiers du Cinéma fez história ao defender a autoralidade de filmes improváveis, produções do seio da indústria norte-americana que, mesmo diante da aderência estrita aos códigos do cinema de estúdio, conseguiam transcender sua vocação de meros produtos industriais e alcançaram patamares sofisticados em relação ao cinema de invenção.
Qual o gesto da curadoria de Brasília ao selecionar esse filme? Aproximar-se em hype do star system à la Festival de Gramado e deixar os vestígios de “tiradentização” para a mostra Caleidoscópio, ou propor, de forma provocativa, uma problematização da suposta dicotomia entre cinema de autor/cinema industrial brasileiro?
É curioso começarmos o texto com esse ponto, pois as experiências de assistir Assalto à brasileira numa sessão da Mostra Competitiva principal do Festival de Brasília é radicalmente diferente de vê-lo em uma sessão comum em um multiplex de shopping, após o lançamento comercial do filme. O filme continua o mesmo (são os mesmos planos rs) mas o meio contamina radicalmente a mensagem: esse é o efeito e impacto das curadorias.
Defendo muito a ideia da curadoria como uma forma de reunir filmes, de modo que o contexto influencia a leitura do conjunto. Ou seja, quando reunidos em conjunto, cada filme acaba ressoando mais do que se estivesse sendo exibido isoladamente. Mas o que dizer de uma curadoria que exibe de Xingu à margem a Assalto à brasileira?

Entre chanchada e filme B, José Eduardo Belmonte recria um assalto real e provoca o debate sobre os limites entre cinema de autor e cinema industrial no Brasil.
Mas, dito isto, vamos ao filme do Belmonte. Assalto à brasileira é uma versão ficcional de um acontecimento real: o assalto à agência do Banestado, em Londrina, em 1987. Assim, o filme se insere numa espécie de subgênero do cinema comercial: os filmes-de-assalto-a-banco. Poderíamos citar diversos filmes, desde Um dia de cão (1975), O plano perfeito (2006) ou mesmo o brasileiro Assalto ao banco central (2011).
No entanto, até mesmo pelo seu orçamento, este filme de Belmonte se aproxima de um filme B. Ele não está preocupado propriamente na espetacularização dos efeitos como subproduto de um filme de ação nem mesmo no planejamento articulado das ações dos bandidos, aos moldes de um The Killing (o filme de Kubrick de 1956, com a ressalva de que se trata de um hipódromo, e não um banco). Ou, ao contrário, de um Onze homens e um segredo (Soderbergh, 2001, em cassinos), os bandidos não são criaturas notáveis, cheias de glamour, adrenalina e senso de aventura, mas simplesmente pessoas comuns. Nesse aspecto, pela falta de preparo dos bandidos, estamos mais próximos da atmosfera de Um dia de cão (Lumet, 1975).
Mas, como dizíamos, Belmonte não está preocupado na espetacularização do filme de ação nem tampouco num mergulho psicológico do universo do banditismo. Em vez disso, o foco do filme é nas relações sociais que transbordam a partir desse ato de exceção. Sem um plano definido para uma ação tão complexa, o grupo de bandidos acaba sendo influenciado por um jornalista, interpretado por Murilo Benício, que se oferece a mediar as negociações entre ladrões e polícia. Ele o faz não propriamente para salvar vidas mas especialmente interessado no acesso privilegiado a informações para escrever uma grande matéria.
Vejo o personagem de Benício seguindo o modelo da classe média, que, de acordo com a análise de Jean-Claude Bernardet em seu livro Brasil em tempos de cinema (1967), atuava como intermediária nos filmes do Cinema Novo brasileiro. Mas Benício não quer conscientizar o povo em busca de uma revolução: ainda que o jornalista pareça ser mais simpático com os ladrões em relação ao comandante interpretado por Paulo Miklos, seu interesse é mais pragmático – acima de tudo, uma boa matéria. O jornalista não é totalmente simpático, mas tem um jeito bonachão e é um pouco oportunista. Por isso, me pergunto se ele não se parece com o próprio Belmonte. Ambos tentam negociar entre a vontade do público e a dos produtores para conseguir os milhões necessários para fazer o filme. E, de forma improvável, esse jornalista está tentando “dirigir” a condução desse assalto, dado o despreparo dos bandidos.
Os bandidos se tornam simpáticos (libertam mulheres grávidas e pessoas com dificuldade de locomoção, pedem sanduíches para todos, etc.) e se tornam quase amigos dos reféns. O filme se concentra, portanto, nessas relações sociais improváveis, de modo que os bandidos se veem próximos dos reféns. Roubando dos ricos para dar aos pobres, os ladrões, em meio ao assalto, começam a formular frases de efeito, defendendo a ação social do assalto. E o mais curioso é que, nos créditos finais do filme, vemos depoimentos dos verdadeiros reféns que confirmam: a ideia não foi uma criação de Bayão/Belmonte, mas, sim, algo que os próprios bandidos disseram.
No fundo, isso nos lembra da famosa frase de Brecht: “O que é o crime de assaltar um banco comparado com o crime de fundar um?”.

Os bandidos de Belmonte: mais atrapalhados que perigosos, mais humanos que vilões.
Por um lado, a polícia de Londrina parece despreparada e pouco preocupada em defender o patrimônio privado. Sua única preocupação é que a situação termine logo. Por outro lado, Belmonte valoriza o fato de o assalto ter se tornado um grande evento, que transformou a rotina da pacata cidade. Milhares de pessoas se aglomeraram em frente ao banco, e a mídia, principalmente a televisão, fez uma cobertura ao vivo. As imagens em VHS dão dinamismo e criam uma conexão entre a narrativa e as cenas.
O roteiro de L.G. Bayão é hábil para criar diversas etapas que prolongam o suspense e jogam a narrativa para frente (ir ao banheiro, os sanduíches, o uísque, a congtagem das notas, a quantia errada, etc.), mas, ao mesmo tempo, não há muitas novidades em termos dos recursos mais típicos e desgastados do gênero. Os personagens são razoavelmente rasos e pouco interessantes em seus contornos psicológicos ou conflitos e dramas. O bandido Moreno, líder do grupo, é simpático mas pouco explorado ou desenvolvido. Bem como seu principal parceiro, que parece ser um pouco mais violento. A mulher grávida do jornalista insere algum elemento de ligação entre o policial e o jornalista, criando um antagonismo até certo ponto cômico. Em vez de ser um filme de ação violento focado em um crime, a narrativa aposta em recursos que o tornam mais leve para o público. O roteiro utiliza toques de comédia e explora as relações sociais, o que diferencia a obra de um típico filme de ação.
O título é muito bem escolhido: Assalto à Brasileira indica que o crime é sui generis, assim como o próprio Brasil. A frase parece ser um comentário sobre o próprio filme, que se diferencia das produções de ação de Hollywood ao abraçar o improviso e a gambiarra típicos do cinema brasileiro. Com essa metalinguagem, que remete à chanchada, o filme se apresenta como um “cinema comercial à brasileira”.
O caráter chanchadesco desse filme fica mais evidente se o colocarmos lado a lado com Assalto ao Trem Pagador, o clássico de 1962 de Roberto Farias. Enquanto o filme de Farias representa o típico cinema industrial e comercial, esta obra, por sua vez, abraça a leveza e os toques de humor que são característicos da chanchada. Se Belmonte tivesse subvertido ainda mais o roteiro de Bayão com mais elementos chanchadescos—fazendo a ação dar completamente errado e a polícia parecer ainda mais despreparada—, a farsa sobre o subdesenvolvimento do Brasil teria ficado mais escancarada. Assalto à Brasileira talvez seja “correto” demais para sua própria proposta. Me parece que o público busca (seja o público do filme quanto o público do assalto, que se acotovela na porta do banco) é justamente aquilo que sai do controle, o que é atípico e se distancia dos padrões de Hollywood. O jornalista, por exemplo, poderia ter um fim trágico, como em A Montanha dos Sete Abutres (Wilder, 1951), o que serviria como uma crítica direta à obsessão da imprensa. No entanto, o roteiro de Bayão, a direção de Belmonte e a própria produção optaram por um caminho mais seguro e menos polêmico, tornando todos os personagens, até mesmo o policial de Miklos, agradáveis ao público.
Ao final, Assalto à Brasileira soa como um filme correto, sem grandes surpresas, com bom ritmo e dinâmica interna. É curioso por propor um olhar sobre as relações sociais dentro da estrutura de um subgênero do cinema. No entanto, se o avaliarmos com a lente da Cahiers du Cinéma—para justificar sua inclusão em um festival de cinema—, sentimos falta de um maior desejo de cinema, de uma mise-en-scène que vá além do ordinário. Embora seja bem executado, falta-lhe uma maior audácia cinematográfica. Pois, se os bandidos pareceram comunistas, no fundo ao final o sistema se manteve ileso.
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