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Festivais

58º Brasília (2025) – Nosferatu

A partir do mito de Nosferatu, Burlan cria uma imersão poética entre o imaginário da vida e da morte

Por Marcelo Ikeda | 16.09.2025 (terça-feira)

– Este texto pode conter spoilers

A multifacetada filmografia desse prolífico realizador ganha um novo capítulo com Nosferatu. Com uma trajetória de mais de quinze longas-metragens (perdi a conta rs), Cristiano Burlan é uma referência nos caminhos do cinema verdadeiramente independente brasileiro. Se de um lado Burlan é conhecido por documentários em que examina, em primeira pessoa, trágicos incidentes de sua vida pessoal, como no icônico Mataram meu irmão (2013), de outro, Burlan possui um conjunto de obras de ficção que expandem os caminhos entre a literatura, o teatro e o cinema.

Assim, depois de Hamlet (2014) e de Ulisses (2024), Burlan prossegue adaptando um clássico da literatura mundial, agora a obra de Bram Stoker. Na verdade, em vez de utilizar a palavra “adaptação”, melhor seria pensar na obra como um ponto de partida para a investigação de um universo poético. Há algo em comum nesses três títulos: os nomes condensam a trajetória existencial de um personagem masculino. Talvez esse seja o grande mote desses filmes: investigar os dilemas individuais desses personagens partidos, divididos entre a vida e a morte. Pois a morte e o luto continuam sendo os grandes temas da obra de Burlan.

O filme mistura influências expressionistas com uma leitura contemporânea e pessoal de Nosferatu, ressignificando sua figura no cinema de gênero.

Mas em Nosferatu essa pesquisa cinematográfica me parece ter alcançado um mais alto grau de amadurecimento, o que comprova uma trajetória artística em plena maturidade. Burlan não está preocupado em traçar uma biografia de Nosferatu, muito menos uma narrativa linear. Seu cinema está mais próximo do cinema de poesia do que de prosa. Por meio de fragmentos de cenas, mergulhamos na trajetória de um personagem que parece flanar por uma espécie de purgatório, entre o mundo dos vivos e o reino dos mortos. Nosferatu muitas vezes se parece com um sonho. Ou com um delírio.

E nesse abandono da geografia realista para um mergulho numa realidade psíquica interior retorcida, Nosferatu permanece fiel à sua influência expressionista, ainda que por vias heterodoxas. Afinal, o Nosferatu de Burlan é uma leitura livre, ainda mais pelo fato de o filme utilizar as referências de ícone-pop para deslocá-las para outro lugar. Esse é outro dos gestos do filme: ressignificar essa figura pop e sua adesão a um cinema de gênero mainstream e os códigos do terror para, a partir dele, deslocá-las de sua função-mercado para aproximá-las de suas próprias referências pessoais. Por isso, é bastante pertinente que o filme cite, até literalmente, Nosferato no Brasil (1971), o primeiro filme de Ivan Cardoso com ninguém menos que Torquato Neto no elenco.

Esse mergulho existencial em um personagem atormantado pelos seus fantasmas existenciais é permeado por um cinema atmosférico, reforçado pelo uso criativo da fotografia preto-e-branco, e ao mesmo tempo por um forte desejo de se contaminar com as impurezas da vida – o instante, o precário, o provisório. Burlan constrói uma espécie de Nosferatu punk da cena underground de São Paulo, inclusive com a participação da icônica banda punk cearense Jonnata Doll e os garotos solventes.

A mise en scène de Nosferatu é teatral e deliberadamente artificial, com atuações intensas que enfatizam o caráter poético e experimental do filme.

Por outro lado, o filme apresenta uma pesquisa interetextual, incorporando elementos da literatura, do teatro e do próprio cinema. O texto é um elemento ativo do filme, em que muitas vezes os personagens recitam trechos, não apenas de Bram Stoker, mas de outros artistas. Em outro momento, frases de Antonioni e Bresson surgem como comentário sobre as próprias opções de mise en scène. Sinto que a atuação de Burlan como professor de cursos de direção de atores ressoa nessa experiência particular. Nosferatu deliberadamente opta por uma mise en scène teatral para reforçar a artificialidade (ou o não realismo estrito) da caminhada de seu personagem: atrizes recitando para a câmera longos monólogos se imbricam com momentos poéticos de experimentação, por exemplo, quando uma delas canta para a câmera.

Por fim, Nosferatu é o filme que talvez mais se aproxime da alma desse boêmio paulistano que, vindo da periferia, fez questão de optar por um cinema sofisticado ainda que radicalmente independente. Nosferatu é como Burlan que, emergido do reino dos mortos, prossegue transitando pela cena boêmia underground da cidade, vivendo, criando, refletindo sobre arte, sofrendo, amando. Um desfile de luzes e sombras pelo imaginário de um personagem atormentado mas fascinado pela vida. A impureza e o instante fugidio, no entanto, no cinema de Burlan, ganham uma forma cinematográfica rigorosa (uma busca por um rigor próprio: ele é rigoroso nos seus próprios termos). Nosferatu é um filme pouco palpável, como a vida, como o palco de um teatro. Nosferatu é sobretudo uma flanância pelo imaginário de um poeta em seu processo de vida-criação.

 

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