
58º Brasília (2025) – O Agente Secreto
ALERTA DE SPOILERS – Nova Hollywood no Recife repensando o Brasil de ontem e de hoje
Por Marcelo Ikeda | 15.09.2025 (segunda-feira)

— alerta de SPOILERS —
O Festival de Brasília de 2025 abriu com grande expectativa para a segunda exibição no Brasil de O Agente Secreto, dois dias após a catártica sessão em Recife, com a presença de 100 exibidores convidados. No palco, Kleber apresentou o filme a partir de um elemento-chave: este filme de época, passado em 1977, dialoga diretamente com o Brasil dos últimos dez anos.
E, de fato, o grande mérito de O Agente Secreto reside na sua capacidade de transcender a estrutura de thriller detetivesco e expor, de maneira abrangente, os modos de ser da sociedade brasileira. Ele demonstra como o projeto autoritário e violento da ditadura não foi um mero parêntese histórico, mas sim uma manifestação de heranças enraizadas, que remontam à relação arcaica de casa-grande e senzala e que se perpetuam até os dias de hoje.
Para tanto, o filme opta por outro encadeamento narrativo, diferente das apressadas narrativas de causa-e-efeito lineares, e apresenta um desfile de casos e situações em que o comum e o fantástico se misturam – e isto é Brasil. Afinal, como diria Jobim, “o Brasil não é para principiantes” rs. Um exemplo claro dessa abordagem está no prólogo, onde o fusca do personagem de Wagner Moura é revistado minuciosamente pela polícia, enquanto um cadáver em estado de putrefação é ignorado. A mensagem é clara: o sistema não se interessa pelo que “já foi”, mas pelo que “e$$tá por vir”, num cenário de corrupção endêmica que o filme aborda não pelo prisma da denúncia, mas a partir de um desejo fabular. Ao mesmo tempo, a narrativa respira um imenso “prazer em narrar”, sem pressa, permitindo que cada cena se desdobre e revele camadas de significado.
Mas como dizíamos no início deste texto, esses modos de ser não são exclusivos desse momento específico em que reinava um regime de exceção: no Brasil, a exceção parece que se torna a regra. As analogias com o momento atual não surgem apenas em episódios pontuais, como a citação quase literal do episódio de Sari Corte Real – a ex-patroa da mãe do menino Miguel, que morreu ao cair do 9º andar de um prédio no Recife em junho de 2020 –, mas se estendem a um retrato mais amplo do Brasil de hoje, com a ascensão da extrema direita e seus sintomas: milícias, ataques à universidade, racismo e machismo. Ainda que algumas vezes o filme exprima essa relação conjuntural com o Brasil de hoje de forma um pouco esquemática, é inegável que a galeria de figuras grotescas e caricaturais está assustadoramente próxima da nossa realidade.
Seria preciso um texto maior para propor uma relação entre O Agente Secreto e Ainda estou aqui – dois filmes brasileiros recentes de grande repercussão internacional que se propõem a revisitar os efeitos perversos de um bárbaro regime político que decide exterminar dois homens inocentes. No entanto, é importante citar a principal diferença: enquanto Salles opta pelo melodrama e pela concentração narrativa na família, Mendonça Filho dialoga com o thriller político, expandindo os núcleos de personagens e formando um amplo e complexo tecido social, sem abrir mão do humor ácido.
Poderíamos também fazer uma relação com certo cinema brasileiro, como, por exemplo, com Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (Hector Babenco, 1977). Mas o que mais me desperta – pelo menos neste primeiro contato com o filme – é seu profundo desejo em dialogar com certa cinefilia, e em especial o cinema americano do final dos anos 1960/1970. Já era possível ver isso em outros momentos do cinema de Kleber, mas aqui essa relação se torna uma chave de leitura quase explícita. Essas opções se expressam não apenas em alguns recursos-fetiche, como, entre outros, o formato panorâmico ou os cortes em cortina, mas especialmente numa outra forma de narrar e apresentar o submundo das relações humanas e sociais. O filme se parece com um exemplar na Nova Hollywood no Brasil de hoje – e não é à toa que aparece um cartaz de No calor da noite (Norman Jewison, 1967) em um certo momento do filme. É preciso ver O Agente Secreto não apenas pelo seu retrato de tipos sociais mas também pela busca de um cinema atmosférico, regido pela cinefilia. Esse desejo pela cinefilia também se espraia pelo filme como reverberação de Retratos fantasmas, pelas relações entre cinema e cidade, pelo imenso papel que o Cinema São Luiz oferece na narrativa, pela forte presença do filme Tubarão (Spielberg, 1976) ou mesmo a grande participação do projecionista representado pelo sempre brilhante Carlos Francisco. (A propósito, o filme possui uma galeria de personagens marcantes, alguns inesquecíveis, como o delegado interpretado por Robério Diógenes ou a Dona Sebastiana por Tânia Maria, uma artesã de Parelhas que surgiu aos 72 anos como figurante em Bacurau).

Entre cinefilia e denúncia, uma aula de história viva.
É totalmente possível relacionar O Agente Secreto diretamente com um conjunto de artigos que desenvolvem a presença de uma estética da nostalgia no cinema contemporâneo. A reapropriação de Mendonça Filho dos anos 1970 possui, portanto, um sentido duplo: de um lado, uma proposta política de relação da ditadura com o Brasil de hoje; de outro, uma relação de nostalgia cinéfila, por meio do diálogo com uma tradição do cinema autoral independente norte-americano, num contexto diferente dos blockbusters atuais e seus filmes de super-heróis. A relação do filme com os anos 1970 é, portanto, ambígua, uma combinação entre rejeição e afeto, entre a política brasileira e o universo fílmico norte-americano. O universo do cinema surge como refúgio possível, ou projeção como campo de fantasia, para quem preferir uma leitura psicanalítica. Como eu havia sugerido em meu texto sobre Bacurau, O Agente Secreto também é a resultante desses paradoxos. Essa combinação entre afeto e repulsa também está presente em diversos outros elementos do filme, como se Kleber rompesse o slogan da ditadura “Brasil: ame-o ou deixe-o” para propor algo mais na linha do “ame-o e o odeie!”. Esse olhar não romantizado se manifesta na forma como o filme retrata com fascínio a cidade de Recife, mas ao mesmo tempo revelando seus processos sociais segregadores. O ponto alto dessa ambivalência talvez seja a cena de Tubarão no Cinema São Luiz: a exaltação da cinefilia popular em um grande cinema de rua, por meio de um blockbuster das majors.
O desfecho de O Agente Secreto é bem menos otimista e catártico que o de Bacurau. O agente vira uma mera manchete de jornal, lembrando o final do visionário Benjamin Abrahão em Baile perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1996). É um acerto do filme não mostrar a cena de sua morte, o que o torna o oposto de Marighella (Wagner Moura, 2019), com seu final ao estilo de Bonnie e Clyde (Arthur Penn, 1967). É mais eficaz mostrar os assassinos sendo executados, como o personagem de Gabriel Leone, um mandante morto por um pistoleiro pobre. O epílogo, com o encontro entre a pesquisadora e o filho do agente, nos remete para o presente e para as lacunas de nossa memória, ou ainda, os abismos entre gerações. O antigo cinema virou um hospital; em Retratos Fantasmas, uma farmácia. Não é uma coincidência: ambos os filmes denunciam nossos apagamentos sociais, mostrando como o suposto progresso capitalista sempre encontra uma forma de encobrir, de empurrar para debaixo do tapete, as agruras e a violência estrutural do nosso país. O Agente Secreto encontra uma forma cinematográfica para trazer esse debate à tona.
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