
49ª MostraSP (2025) – Madre Vera
O sagrado e o profano em Madre Vera
Por Ivonete Pinto | 21.10.2025 (terça-feira)

Ecos de Béla Tarr, Cristian Mungiu, Andrei Tarkovski, Madre Vera (Mother Vera, 2024) consegue, com o muitas vezes desprezado gênero do documentário, alcançar píncaros estéticos que só a ficção costuma ambicionar.
Em Madre Vera, imagens em preto e branco valorizam a neve e o hábito escuro das freiras, criam um contraste arrebatador. Com esse convite pictórico, acompanhamos a freira Vera em seus afazeres em um convento no interior da Bielorrússia, entre eles a limpeza cuidadosa da profusão de obras sacras, os ícones que as igrejas ortodoxas eslavas possuem. Ela também se ocupa dos cavalos da fazenda do convento, consertando as ferraduras com um carinho especial.
Vera não é uma freira de trajetória padrão. Foi casada, seu marido esteve preso (por culpa dela, segundo a própria) e resolveu entrar no convento para ficar um ano e já se passaram 20. Até um determinado momento de sua narração em off, sabemos apenas que pode ser uma expiação, uma punição de culpa, ou prova de fidelidade conjugal. As informações são liberadas a conta-gotas, como a de que foi infectada pelo vírus HIV por Oleg, o marido, logo no início do casamento. Além dos offs, vamos completando a biografia da personagem através de raros diálogos, com raras pessoas que cruzam seu caminho. A câmera é austera como a vida monástica: planos fixos, ora revelando a paisagem, ora concentrando-se no rosto de Vera. A trilha diegética é composta pelas músicas cantadas pelas freiras no convento.
O filme todo tem um tom monástico, que atinge a rotina profana de alimentar as vacas, e escovar os cavalos. Tudo num cotidiano de repetições onde, como diz um morador da fazenda, a vida se resume a trabalhar, comprar comida, rezar, ir de liturgia a liturgia, de procissão em procissão. Aliás, são muitos homens trabalhando ali, numa miserável e solitária monotonia. Em um dos planos, vemos que até um gatinho recusa a companhia de um homem.

Planos fixos e trilha diegética revelam a vida monástica como um ciclo de trabalho, oração e solidão
Presídios – Aos poucos, vamos compreendendo que os homens são prisioneiros, que trabalham para a fazenda do convento. E que o aprisionamento para eles equivale ao delas. Madre Vera, pelo que nos é sugerido, não é um documentário que recorre à ficção e vira um híbrido, por mais que as ações sejam propostas pela dupla de diretoras britânicas, Cécile Embleton e Alys Tomlinson, o ambiente é este mesmo.
No entanto, há um estranhamento envolvendo (também) os prisioneiros, em sua maioria velhos. Eles não se assemelham em nada com o perfil de prisioneiros que conhecemos, sempre jovens. Um dos aspectos mais intrigantee certamente se deve ao fato do filme se passar nesta ex-república soviética, a Bielorrússia.
Não há uma fagulha que mostre o país. Tirando um celular nas mãos de uma freira, o lugar parece perdido no tempo. A dramaturgia do documentário, por sua vez, faz com que todos e tudo se encaixe num plano quase celestial. Mesmo que percebendo que a neve é neve mesmo, e o gatinho não é Inteligência Artificial, o espectador mais atento pode notar que há uma construção, que Vera é mostrada pela perspectiva das diretoras. Neste sentido, uma cena ilustra bem esta construção: Vera acaricia um imponente cavalo branco, e ele está tão receptivo que se deita na neve para facilitar o carinho; há nesta cena uma clara conotação sexual, que parte da personagem, da decupagem, das diretoras, e, vamos combinar, do cavalo, pois que ninguém é inocente ali.
Mas tudo embalado na aura do sagrado. Quando Vera passa o Natal com sua mãe, irmã e sobrinhos, alguém diz que Cristo ressuscitou. E isto soa como uma notícia, algo que aconteceu. Uma realidade paralela que atesta a profundidade do caráter religioso de todos.
Entre uma missa e outra, uma cantoria e outra, temos um painel de uma vida sui generis. Como as diretoras chegaram nesta história? Dados extra fílmicos dão conta de que existe um projeto por trás do filme. [Aconselho ao leitor, se ainda não viu o filme, pular o próximo parágrafo, pois esta informação pode tirar um tanto do encantamento de descobrir as diversas camadas da personagem no desenrolar das cenas].

Ícones ortodoxos, cavalos e velhas canções: o sagrado e o terreno convivem na mesma atmosfera.
Trata-se do projeto Ex-Voto, da fotógrafa Alys Tomlinson, que codirige o filme, sobre locais de peregrinação em países como França, Polônia e Irlanda. Vera foi fotografada e contou sua história pregressa, como Olga uma jovem drogada vivendo na Bielorrússia, que virou freira. A ideia para o documentário veio dali.
Naturalmente, Cécile Embleton e Alys Tomlinson foram atraídas pelo exotismo do cenário, pela personagem tão original de uma ex-viciada em heroína, rejeitada pelo marido, salva pela religião. Esse percurso, em si, pode não ser original. Encontraríamos personagens com este histórico em muitas esquinas evangélicas, mas num convento ortodoxo na Bielorússia? E este é o ponto, voltamos a frisar, que torna o filme exótico. Ainda mais que não contextualiza, não passa perto do ditador Alexander Lukashenko, títere de Putin, que governa o país há mais de 30 anos. De alguma maneira, tudo o que aconteceu com Vera/Olga teria certa relação com o estado de coisas no país. Mas pouco importa quando a intenção é nos transportar para aquele convento cheio de freiras, de missas, de sussurros, de cânticos, de neve e de animais.
A vida dura naquele entorno não tira a beleza da imagem, da atmosfera solene. A sensibilidade da direção de fotografia ─ assinada por Cécile Embleton e Alys Tomlinson ─ para enquadrar os personagens é tocante. Destaque para os momentos de contemplação, sejam ligados à natureza, sejam voltados à intimidade. Uma câmera que deixa os personagens e os espectadores respirarem. Para tanto, em algumas passagens, a montagem recorre a telas pretas, cujo tempo de duração, ao que parece, está vinculado à elipse que cerca a ação. Ou seja, um documentário hiper elaborado, protagonizado por uma mulher, dirigido por duas mulheres, produzido por outra. Elas nos conduzem a um outro mundo.
O Melhor Documentário no BFI London Film Festival, está sendo disponibilizado pela Mostra na plataforma Spcine Play (corra porque as visualizações são limitadas) na programação da Perspectiva Internacional – Foco Reino Unido.
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