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Críticas

Valor Sentimental

Muito confete e sofrimento para pouca expressividade

Por Cléber Eduardo | 23.12.2025 (terça-feira)

Valor sentimental (Affeksjonsverdi, 2025) do norueguês Joachim Trier, é um filme de efeitos. Como os cinco anteriores dele. Há uma profusão de cortes secos. A quantidade de breves momentos supera a expressividade dos mesmos. Esse tipo de procedimento compõe uma tonalidade na qual se enfatiza um auto-marketing: isso é uma solução artística. Supomos que é mesmo. Mesmo que inócua.  

A luz é fria. Os personagens estão  desesperados ou indiferentes, ora choram, ora silenciam, com presente de travas e passado de traumas, menções a suicídios, bem ou mal sucedidos. Há desde o início uma estetização do sofrimento, sempre dentro do universo familiar dos personagens, especialmente em uma relação entre pai e filha. Um solo por demais trilhado.

Esse ambiente é familiar a quem acompanha o cinema escandinavo, mesmo sem tanto rigor, e essa familiaridade se amplia com o manjado balanço suave da câmera, reduzida a um clichê formal pelo cinema do Norte da Europa, sobretudo depois do Dogma 95 na Dinamarca. No entanto, por outro lado, é o Anti-Dogma.

Nada de imagens de definição visual caseira. Há um incontrolável artificialismo que arrota higienização formal, estilo genérico indutor de esquecimento imediato, que consagrou o cineasta nos últimos 20 anos como esteta higienizado do sofrimento sem dor. No entanto, é, segundo diferentes frentes críticas e  de festivais, um filme diferenciado. Ganhou o Grand Prix do Juri em Cannes 2025. Isso solicita uma observação

O campo da recepção crítica e festivaleira parece se ligar menos nos filmes, pelo que são em seu tempo em relação a tempos outros, e mais em uma necessidade de se eleger e marquetear os fenômenos da safra, sem sutilezas e colocações em perspectiva. É preciso inventar os grandes filmes ou o cinema autoral cairá na síndrome do conjunto médio. Parece antes um válvula acrítica de escape. 

Nenhuma aberração nessa ansiedade de levantar placas de melhores disso ou daquilo, mas há entre nós uma progressiva naturalização de um sintoma em metástase: a submissão do campo artístico a uma estrutura econômica, cultural e cognitiva de um neoliberalismo de ações no mercado financeiro, como se o capital simbólico dos filmes fosse da mesma natureza da Bolsa de Valores e demandasse investimento aqui ou ali

O cinema tem se tornado uma corrida de cavalos para os círculos conectados aos filmes e ninguém está livre de fazer apostas nesse turfe. Tudo parece se resumível a indicações a Oscar e a prêmios em Cannes. Valor sentimental foi bem nesse tabuleiro de apostas. Suas ações estiveram em alta. Talvez pela premissa baseada em traumas, ressentimentos, reconciliações pela arte, pai diretor e filha atriz. Isso pega.

Trier com seu troféu em Cannes, cercado pelo elenco: Filme correu bem pela sua raia, tal qual um cavalo bem treinado.

Pois é por aí: um cineasta veterano e semi aposentado decide voltar a filmar, convida a filha para ser a protagonista, ela recusa o papel e ele acaba escalando uma estrelinha da moda. Situações do passado, do nazismo inclusive, aparecem como fantasmas. A maior parte do que importa acontece em uma casa, a casa da família, com suas memórias nas paredes.

Não é sequer o caso de estarmos diante de um filme sem nenhuma expressividade, mas de um cinema de baixa força alçado à condição de obra farol de seu tempo, como parece ser o caso, assim como em anos anteriores aconteceu com outros filmes exibidos em Cannes e depois colocados como questões para o Oscar. Assim como aconteceu com outras obras do mesmo diretor, um dos mais bem sucedidos autores medianos de filmes médios

Renata Reinsve (e) como Nora em “Valor Sentimental”: Trier mais uma vez no universo de feridas administradas com dificuldade.

Nascido no começo dos anos 1970, hoje com pouco mais de 50 anos, 20 anos de carreira, começou a ser notado com o curta Procter (2002), incensado por alguns críticos noruegueses, considerado dos melhores curtas europeus de 2002. Tem a ver com suicídio e suas motivações

A estreia em longa metragem com Começar de novo (Reprise, 2006), exibido no Festival de Toronto, Rotterdã e no Sundance,  já mostrava um pouco de seu futuro: câmera fluida, jeitão pop chic, jovens entre a euforia e a depressão, ambiente intelectual, relações problemáticas, o espetáculo da dor das elites. 

O segundo longa, Oslo, 31 de Agosto (Oslo, 31. august / 2011), foi um salto: estreou na Un Certain Regard, em Cannes, e foi considerado por parte da crítica um dos melhores filmes do ano. Mais juventude entre desespero e a festa, internação por vício em drogas, tentativa de suicídio e lágrimas presas na garganta. O universo de personagens estava bem delineado

Mais forte que bombas (Louder than Bombs, 2015) foi o primeiro filme em inglês do diretor, com Gabriel Byrne e Isabelle Huppert, outra história com o suicídio a espreita ou já ocorrido, com segredos famílias, feridas e esforços conciliatórios, que estreou na competitiva do Festival de Cannes. Ninguém duvidava que, com seus filmes deprês e estilizados, Trier havia alcançado o posto de noruguês internacional. 

O longa seguinte, Thelma (2017),  estreou em Toronto, com menor repercussão. Lida com uma jovem reprimida pela religião católica que, atraída por uma amiga, desenvolve uma força sobrenatural sinistra. É obra mais alegórica que de gênero exatamente. mas retorna aos jovens com altos problemas psíquicos.

No ano seguinte, realizou, com seu irmão, Emil Trier, o seu filme mais tradicional, um documentário sobre o pintor dinamarquês Edward Munch, The Other Munch (Den andre Munch, 2018), com entrevistas com o escritor Karl Ove Knausgärd, imagens da telas do pintor, paisagens nevadas, música de piano, um estandarte sobre arte e artista. O diretor aparece em alguns momentos caminhando com Knausgärd.

A pior pessoa do mundo (2021), exibido na competitiva de Cannes, onde foi premiado na categoria de atriz (Renate Reinsve), é das obras menos impactantes, com protagonista pulando de uma profissão para outra, de uma experiência para outra, sem nunca criar raízes de nenhuma natureza.

Valor sentimental nada acrescenta aos anteriores e nada rompe com seu universo de feridas administradas com dificuldade. Por ter no centro um cineasta com mais idade e experiência, mas também mais frustração, pode dar essa impressão de maturidade artística, embora pareça antes um comodismo com as estratégias vitoriosas até então. Sinal de que a empresa Trier está movimentando ainda a Bolsa de Valores.

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