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Críticas

Moscou

Ficção, realidade? Não importa

Por Luiz Joaquim | 07.08.2009 (sexta-feira)

Diante de documentários que, do ponto de vista artístico, se apresentam apenas e às vezes exclusivamente como uma série de cabeças falantes, que discutem determinados assuntos para, ao fim da projeção, disseminar um sentimento improvável de conclusão, de assunto encerrado, beirando a firmeza de uma reportagem telejornalística, é sempre um prazer assistir às incursões documentais de Eduardo Coutinho.

Em filmes como “Edifício Master” (2002) e “O fim e o princípio” (2005), ao invés de perpetuar a série de ‘cabeças falantes’, Coutinho mostrou sensibilidade ao descortinar um interesse humano por pessoas, por histórias, por questões que em momento algum sugerem ou implicam um encerramento. O que foi registrado pela câmera, durante as entrevistas, reflete de certa forma os interesses e a ética particular do cineasta. Vida, morte, religião, arte, memória. É como se, diante das incertezas da própria dinâmica social, que não prefigura uma resposta embalada para nenhum desses assuntos, Coutinho escolhesse levar suas dúvidas adiante via imagens em si incompletas, que necessariamente repercutissem em seus filmes seguintes, num constante aprimoramento do seu discurso pessoal.

Em seu filme seguinte, “Jogo de cena” (2007), esse autor paulista brincou com a verdade tácita a qual é (erroneamente) atribuída ao gênero documental para derrubar as barreiras entre personagem x pessoa, ator x gente comum. Se o jogo de cena do documentário evidencia essa aparente contradição, entre ‘atuar’ e ser ‘sincero’ diante da câmera e simbolicamente diante do teatro, como força motriz do trabalho, em “Moscou”, filme que estreia nesta sexta-feira no Cinema da Fundação (Recife) e em todo país, a dicotomia entre realidade x ficção ganha uma dimensão surpreendentemente experimental.

“Moscou” é um documentário sobre a construção de uma peça, “As três irmãs”, de Anton Tchekov, que nunca irá entrar em cartaz. Atores do Grupo Galpão e o diretor teatral Enrique Diaz têm três semanas para finalizar a encenação. Tempo improvável para completar o trabalho. Enquanto isso, a câmera de Coutinho interage com essa encenação, ao mesmo tempo em que é filmada às vezes por outra câmera, num recurso metalinguístico que torna ainda mais complexo o discurso de “Moscou”. As cenas são apenas fragmentos, pedaços incompletos de um work in progress que nunca se completa. É justamente esse o interesse de Coutinho: filmar o processo, o que funciona como uma metáfora da própria existência, fragmentada, incompleta, fracionada em doses pontuais. Ou funciona como um comentário sobre a arte, e sua função de, a partir da delimitação do que decide mostrar ou não mostrar, sugerir uma experiência estética única. Tudo isso numa constante radicalização do material filmado.

Enquanto os atores/personagens parecem conversar normalmente numa cena, seja num camarim, seja durante um lanche, vemos aquele diálogo se repetir em outro momento e concluímos que aquele papo informal era, talvez, parte de um roteiro prévio, e que fazia parte da peça. O grupo de atores relata histórias possivelmente pessoais, ou potencialmente irreais, olhando para a câmera, ciente que o dispositivo está ali para registrar não necessariamente o que eles têm a dizer, mas pontualmente para mostrar o que há de não-dito, de intenso no gestual, nas relações entre eles. A arte como recurso para apreender o indizível. E essas histórias ainda convergem, dialogam umas com as outras, numa rima sempre instigante e enigmática.

São pessoas ou personagens? A perfeição métrica da encenação sugere muito mais do que define. E essa intensa mistura ganha contornos ainda mais não-conclusivos a partir dos cenários e dos artifícios cênicos. Diante de uma parede ainda em construção, um ator, segurando uma fotografia antiga, relata a história da foto. O que ele diz não soa como os relatos despojados e imprevisíveis de outros documentários de Coutinho, mas pensados do ponto de vista literário, da construção narrativa previamente elaborada, do efeito previamente estudado. A partir da ficção, e de um dispositivo que trabalha no âmbito da reminiscência (fotografia), nos aproximamos do personagem, do que há de humano, ou da pessoa que interpreta esse personagem.

Godard dizia que, se um cineasta escolhe fazer ficção, vai encontrar o documental durante o processo de produção, do mesmo modo que se produzir um documentário, um diretor vai dialogar com a ficção. “Moscou” se apresenta como um curioso desafio à teoria de Godard: é como se dentro de cada imagem, de cada gesto e de cada olhar coabitasse, em constante choque, ou em instigante harmonia, uma ideia de ficção e documentário, realidade e encenação. O próprio sentido do título, “Moscou”, como uma cidade que não existe, ou existe fora do quadro, apenas na memória de quem viveu lá, ou de quem sonha com Moscou como um lugar a ser atingido, apesar da impossibilidade disso, reflete o uso de metáforas que rodeiam a narrativa do filme de Coutinho, para discutir sobre memória/vida/sonho, assuntos presentes na obra pregressa do cineasta. É o filme mais arrojado de Coutinho, diretor que passa por um momento questionador do seu próprio limite criativo. Dentro do que faz sucesso no cinema brasileiro, “Moscou” é um bem vindo desvio do padrão.

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