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Entrevistas

Entrevista: Eduardo Coutinho (As Canções)

Filmei como um São Francisco de Assis, diz Coutinho

Por Luiz Joaquim | 15.06.2011 (quarta-feira)

FORTALEZA (CE) – Mais que uma lição de cinema, ouvir o realizador Eduardo Coutinho, 78 anos, soa também como uma lição de vida. Com uma vasta cabeleira branca, mais magro e frágil, mas com o humor afiado e uma sagacidade vigorosa sobre o que deseja do cinema, o fumante incorrigível veio a Fortaleza para ser homenageado domingo na 21a edição do Cine Ceará: Festival do Audiovisual, que encerra amanhã.

Na manhã de sábado, toda a imprensa presente no festival parou para ouvir Coutinho numa livre conversa sobre sua carreira. Logo na primeira pergunta, sobre o novo projeto, o diretor de “Cabra Marcado para Morrer” foi peremptório: “Não posso falar do último filme nem do penúltimo”.

“Mas já foi divulgado. É mesmo sobre a relação afetiva das pessoas com a musica?”, retrucou um repórter. “É mesmo, né? Já foi divulgado. Isso é o que dá falar com jornalista…”, brincou Coutinho para depois revelar, com cuidado, informações sobre o filme que acaba de rodar, ainda sem nome, e que está em fase de edição.

“João Moreira Salles vai sofrer para resolver esse trabalho também”, disse em referencia a ajuda que o produtor da Videofilmes ofereceu na definição do conceito para “Moscou” (2009). “Com ‘Moscou’, comecei, rodei e saí do filme em crise”, recorda. “Crise que surgiu ao encerrar ‘Jogo de Cena’ (2007), quando levei muito mais tempo para rodar. O novo filme gravei todo em uma semana. ‘Jogo de Cena’ é um ‘Titanic’ perto deste”.

Antes de detalhar sobre o novo filme, o cineasta comentou a respeito do inacabada obra anterior, que chegou a ser exibido na Mostra Internacional de Cinema de SP em 2010 com o nome de “Um Dia na Vida”, a titulo de ser um material bruto para um filme futuro. O realizador deixou claro que desistiu em função da proporção da alta estrutura que o projeto começou a demandar. “E eu que já saí da ficção para não ter de trabalhar com 40 pessoas”, lembrou. Ali a idéia era desenvolver um filme a partir de citações de toda ordem, e isso passava pelo material colhido da televisão.

Voltando ao novo projeto, Coutinho diz que lembrou de uma ideia muito antiga quando queria registrar pessoas cantando músicas de Roberto Carlos. Mas no novo filme, isso não aconteceu. “A estrutura aqui é a de ‘cante e conte’. A pergunta essencial é, por que as pessoas cantam? Saímos em busca de pessoas comuns no centro do Rio Janeiro, montamos uma estrutura no Largo da Carioca, onde encontramos classe média, gente paupérrima, todos os tipos”.

E continua, “só interessava se o cara fosse bom na interpretação e na história que contava. Mas não me interessava que falassem de questões estéticas ou técnica sobre a música. Lá montamos um cenário com um fundo preto e uma cadeira, a mesma de ‘Jogo de Cena’, com uma câmera num tripé. Só isso. Trabalhei como um São Francisco de Assis filmando o pecado do mundo”, brincou.

Lá na estrutura, “os ‘cantores de chuveiro’ iam e cantavam o que queriam para depois falar a respeito. Exceto por uma música que sugeri, mas não posso adiantar qual, as canções não foram induzidas. Curiosamente ninguém cantou musica estrangeira, nem funk, coisa até que eu queria”, comenta.

“Tem também música de dor de cotovelo porque, por coincidência, as pessoas falam de seu passado. Isso porque não são tão jovens e eles sabem reviver, enquanto os jovens só sabem viver”, reflete.

“E homem não fala quando é corneado. Homem chora quando fala do pai. As pessoas se entregam ao filme de uma forma absurda. Observo que o povo no Brasil se expressa pela música desde sempre. E falo isso fora do folclore todo que criaram: Tom Jobim, escola de samba, etc. Não precisa se alfabetizado para isso. O livro não deu certo com o povo como a música. Dessa forma, pela música, entra tudo: machismos, paixões, as perdas”, sintetiza.

A respeito das criticas que sofreu sobre “Moscou” ter sido um impasse em sua carreira, Coutinho foi indagado se o novo projeto seria uma espécie de resposta às estas criticas. “Não. Se eu quisesse dar uma resposta mandava uma mensagem”, simplificou. “É apenas um filme não-cinematográfico que aceita e incorpora a ficção sentimental, sem a qual não vivemos, nem mesmo um critico francês”, falou, para soltar o sorriso na platéia de críticos ibero-americanos.

“Se há algum talento em mim, é o de estabelecer um diálogo. O que há de difícil é saber qual a distância. Não ficar muito junto demais, não ficar muito longe. Estar presente, estar ausente. E não julgar. Muito menos a estética. Esse troço é complicado, e não dá pra por num livro”.

“E como fica a questão de autoria, nesse sentido?”, soltaram a pergunta. “Ah, pra mim é como o sexo dos anjos. E não é falsa modéstia nem frescura. Mas penso, e isso é contraditório, que todos os filmes compõe no conjunto uma obra, o que já é também altamente arrogante. Isso me basta. A vida é curta, e já está grande demais”.

E completa: “Ter a chance de fazer filmes já é maravilhoso, e o mistério persiste. Por que as pessoas tem necessidade de falar? Mulheres em particular, eu percebo. É espantoso, pois as pessoas contam coisas profundamente humilhantes. E aqui eu fico confiante porque percebo nelas um alívio extraordinário. O único crime que você não pode cometer, e já cometi em ‘Santo Forte’ (1999), é fazer a pessoa achar que ele foi mal na entrevista”, revela. “A mentira piedosa é essencial aqui”.

Para a pergunta se voltaria a se dedicar a uma produção com a estrutura de produção e proposta totalizante de “Cabra Marcado para Morrer” (1964/1984) Coutinho responde: “Mas eu só fiz esse filme porque me filiei a UNE, e nem era comunista nem nada. Daí recebi a proposta de fazê-lo, e foi interrompido. A questão é que esse filme ficou como meu, como um cadáver insepulto, e eu queria enterrar. Daí eu digo que meus outros filmes, qualquer um poderia fazer, menos o ‘Cabra…’. E não faria algo de maneira totalizante, se não houvesse ao menos uma fagulha de pessoalidade. Nenhum tema é importante. Importante é como você trata o tema. O filme é uma questão de forma”.

E qual a sua relação com seus filmes de ficção, – “O Pacto” (1966), “O Homem que Comprou o Mundo” (1968), e “Faustão”(1970) -, perguntam. “Eu não os vejo. Ali eu tinha 37 anos, e não sabia quem eu era ou o que fazia. Tinha inseguranças de toda ordem. E você tem sofrimentos inúteis, muito embora estes sofrimentos sejam justo, e daí o que resta é a pouca maturidade, se é que ela existe, porque na verdade você tem a infância, a adolescência e daí fica velho”.

“Mas naquele época eu queria aprender, e descobri que não tinha interesse na beleza, mas no documentário. Isso não quer dizer que os renego, e nem lamento nada. A única coisa que queria é que o cinema não acabasse, que houvesse mais salas de cinema e não só exibições individuais, mas que o coletivo continuasse. Pelo menos nisso de se reunir para ver filmes”. E encerrou a conversa, sob aplausos, para em seguida ir fumar um cigarrinho na varanda.

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