X

0 Comentários

Críticas

Olha pra Elas

As mulheres encarceradas e a nossa miopia habitual

Por Ivonete Pinto | 25.05.2023 (quinta-feira)

Este é um documentário que não traz propriamente novidades, que não revela nada do que já não sabemos através do jornalismo. A diferença é que não é uma reportagem e o tempo dedicado para cada personagem determina nossa adesão às suas histórias e por meio delas temos um retrato de uma desumanidade que costumamos ignorar.

A diretora Tatiana Sager tem trilhado uma carreira sui generis em termos de temática. Ela se dedica ao submundo, àquela população que preferimos fingir que não existe, os à margem, os encarcerados. Sua produção revela interesse e sensibilidade. Em 2014 dirigiu, com Zeca Brito, O Poder entre as grades, baseado no livro “Falange Gaúcha”, de Renato Dornelles, sobre o crime organizado no Rio Grande do Sul. Ali surgiu uma parceria com o jornalista Dornelles, um expoente da reportagem  policial.  Um equivalente a um Caco Barcellos que optou por se aprofundar nas entranhas do crime gaúcho e sua relação com o Estado. A dupla dirige então Central (2016),  sobre o cotidiano do Presídio Central de Porto Alegre e o funcionamento do crime organizado neste que era considerado o pior presídio da América Latina. Tatiana Sager dirigiu também, com roteiro de Dornelles, a série para a TV, Retratos do cárcere (2020).

Desta vez, e sempre pela produtora Panda Filmes, Sager e Dornelles ampliam o cenário, mostrando personagens mulheres, encarceradas no Presídio Madre Pelletier (Porto Alegre), e nos presídios estaduais  de Guaíba, Canela e Caxias do Sul. Olha pra elas (2023) abre  expondo as relações familiares: um marido e duas filhas estão em frente ao presídio Madre Pelletier tentando se comunicar com a esposa que os vê por uma janela da prisão. O filme inicia, desta forma, apontando uma exceção, pois como uma cartela indica,  80% das presas têm filhos  e são mães solo.  Aos poucos, somos apresentados a outras personagens mais dentro das estatísticas, ou seja, mulheres que quando foram presas eram  chefes de família e em sua maioria envolveram-se com o crime por contingência, levadas pelos companheiros. O tráfico de drogas é o principal motivo, dado por demais conhecido por todos nós. O que não estamos acostumados a ver é o retrato do sofrimento que é viver sem ter visitas (mesmo as casadas, são abandonadas por maridos e familiares) e sentem uma saudade dos filhos que possivelmente nós nunca vamos ter ideia do que isto signifique naquela dimensão.  A particularidade sórdida escancarada pelo filme é que os chamados companheiros. Quando existem, não “puxam sacola”. Segundo elas, podem até visitá-las nos primeiros tempos, mas depois seguem suas vidas, nem dos filhos querendo saber.

80% das presas têm filhos

Há filmes com esta temática que, por diversas razões, omitem  o motivo da pena, não  incentivando que o espectador faça o seu julgamento sobre o personagem que está vendo. Há o caso até do documentário  Sem pena, de Eugênio Puppo, visto no Festival de Brasília de 2014, que não mostra rostos. O conceito não vale para Olha pra elas, que além de rostos, informa nome, idade, motivo do crime,  tempo de pena e local em que está presa. A opção, se vista em conjunto, permite à audiência se envolver com as histórias contadas, ao estilo de alguns documentários de Eduardo Coutinho, sem deixar de fazer um quadro sociológico do país através das presas e suas circunstâncias.

E as histórias que ouvimos, muitas vezes contadas com o choro incontrolado, derrubam qualquer espectador mais empedernido. Elas precisam contar sua vida e como foram parar ali. Percebe-se que há confiança em quem pergunta. O dispositivo, mais uma vez diferente do estilo coutiniano, não nos é apresentado abertamente, mas em vários momentos ouve-se a voz da diretora fazendo perguntas. Uma única vez é possível ouvir uma voz masculina – depreende-se que de Dornelles – o que nos leva a concluir que a relação de confiança se dá por ser uma mulher atrás da câmera.

Em O cárcere e a rua, de Liliana Sulzbach (2004), podia-se observar a mesma relação, embora sejam obras bastante distintas.

Olha pra elas mescla as falas das detentas com  depoimentos de autoridades (assistentes sociais, advogadas e juízas). Alguns  derrubam a máxima de que o Brasil não é o país da impunidade. As mulheres são muito punidas, o encarceramento só aumenta, e as punidas são sempre as pequenas traficantes. Os patrões, os “donos de helicópteros”, não são pegos. Além do que, o encarceramento é o da pobreza. Quando soma-se a isto o fator racial, as coisas ficam piores. Um das mulheres entrevistadas, a única ex-apenada ouvida, é negra e pobre (neste contexto, dizer pobre é quase um pleonasmo). Talvez seja o momento mais contundente, pois revela toda crueldade que uma mulher pode enfrentar, sendo torturada em frente ao filho pequeno segundo seu relato. Seu choro convulsivo é impossível descrever.

Cenas de “Olhe pra Elas”

Torturas – Nada disto é novidade. A tortura, praticada contra estas populações, é ferramenta costumeira entre brigadianos e polícia civil. Quando se trata de torturar grávidas, a ditadura militar foi pródiga e parece que ainda tem adeptos.

E há o descaso, que não passa de  crueldade assumida. Um levantamento da defensoria pública descobriu que o Estado gastava por ano até quatro reais com cada presa,  dinheiro suficiente para comprar um sabonete por ano… São as visitas que fornecem produtos básicos, mas considerando que muitas delas não recebem visita, por estarem longe, por terem sido abandonadas por companheiros e familiares, falta tudo.  O uso de miolo de pão como absorvente é emblemático e fica no ar como denúncia de quanto o Estado pode ser cruel. Se não saber onde estão os filhos é a pior pena, como diz uma delas, a falta de dignidade também choca.

O documentário se encaminha para o final mostrando um encontro muito desejado de uma mãe com suas três filhas (uma delas com Down) e um filho, entre adolescentes e crianças. Assim, o filme abre e fecha reafirmando o valor da família como força motriz para aquelas mulheres sobreviverem. A objeção fica por conta de um procedimento formal: a câmera, sempre muito próxima do rosto de todas as personagens, neste momento também gruda no rosto dos filhos. Há um constrangimento ali, uma invasão. Um gesto que soa agressivo em uma ocasião tão íntima e tão rara. Afinal, se o travelling é uma questão moral, o close não deixa de sê-lo.

No entanto, esta nota dissonante, que talvez nem seja compartilhada por todos os espectadores, é um  detalhe frente à natureza deste filme. Sua existência é o que há de mais relevante face a um dado que surge na tela antes dos créditos: O Brasil tem a terceira maior população carcerária feminina do mundo. São 42 mil mulheres presas.

O filme está em cartaz Porto Alegre na Sala Norberto Lubisco da Casa de Cultura Mário Quintana, no Cine Passeio em Curitiba e na Sala Sinhozinho em Palmas. Em breve entrará no streaming.

Mais Recentes

Publicidade