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Festivais

58º Brasília (2025) – Futuro Futuro

Distopia sensorial de Davi Pretto revela crise humana, tecnológica e social em Porto Alegre

Por Marcelo Ikeda | 26.09.2025 (sexta-feira)

– Este texto pode conter spoilers

Último filme a se apresentar nesta edição do Festival de Brasília, Futuro futuro, de Davi Pretto, é um filme sobre alienação. O filme acompanha a jornada de K (Zé Maria Pescador), um homem que desperta desmemoriado numa cidade suja e empobrecida. Acolhido apenas por um trabalhador precarizado solitário (um clickworker interpretado por Castanha, que já havia protagonizado o primeiro longa do diretor), K busca recuperar sua memória com a ajuda de uma máquina chamada Oráculo. Os fragmentos de sua memória perdida surgem como flashes de imagens produzidas por inteligência artificial.

Davi Pretto, com essa abordagem, realiza uma ficção científica distópica que se alinha a uma tendência no cinema contemporâneo, tanto global quanto brasileiro: o uso de elementos de gênero de forma não convencional. O filme não adere plenamente às regras da ficção científica tradicional, mas as utiliza como um ponto de partida para deslocá-las para outro lugar e explorar algo mais ambíguo. O filme desloca as características mais típicas do cinema fantástico para dar primazia à criação de ambiências. Em vez de focar em uma narrativa de causa e efeito ou na identificação com personagens com motivações claras e fortes, a obra valoriza a atmosfera, os sentimentos e as sensações. Os elementos de ficção científica servem para sugerir um universo onde a angústia e a desorientação são palpáveis, mais do que uma história com um enredo linear.

O filme se torna, assim, um cinema de atmosfera, onde a estética distópica surge como uma ferramenta para investigar temas como a alienação e a crise de identidade, de uma forma que um cinema puramente realista talvez não conseguisse.

K desperta desmemoriado em uma cidade empobrecida, símbolo da alienação urbana que permeia o filme.

A ambição política do filme, ao explorar a alienação e a cisão do mundo contemporâneo, dialoga com o conceito social de “cidade partida”. Mas longe de qualquer didatismo ou panfletarismo, a obra usa essa dicotomia como ponto de partida para mergulhar em uma profunda angústia existencial, revelando a dúvida e o deslocamento de seus personagens. Sua força reside em uma investigação puramente cinematográfica, onde a potência da narrativa se manifesta em climas e ambiências que evocam um cinema de busca e de deriva, recusando-se a oferecer diagnósticos sociais simplistas ou respostas pré-fabricadas.

O filme de Pretto traduz a crise cíclica do capitalismo mas não como uma tese ou um  diagnóstico político-econômico, mas como um profundo sentimento de crise humana e de identidade. Em vez de apresentar uma tese fechada, a obra convida o espectador a compartilhar uma experiência íntima de desorientação.

Essa abordagem se aproxima do surrealismo, ao construir uma estética que espelha uma profunda desorientação na organização dos sentidos, expressa por meio da ambiguidade entre o pessoal e o social. A geografia da cidade é usada como espelho para a perda de sentido, transformando a paisagem urbana em uma extensão da angústia interna dos personagens. A desorientação aguda que o filme transmite não é apenas um tema, mas um elemento central de sua linguagem visual e sonora.

Ao focar na dualidade entre o lado pobre e o rico da cidade, o filme parece ratificar as dicotomias em torno de uma cidade partida – uma cisão radical, em vez de uma contaminação entre ambos os elementos no mesmo espaço. Essa escolha me fez lembrar do filme Miami, Cuba, de Caroline Oliveira, curiosamente um documentário sobre João Pessoa.

Futuro Futuro pode ser interpretado como uma resposta indireta e poética à tragédia das enchentes em Porto Alegre, mas o diretor, ao recusar a abordagem documental direta, nos oferece uma reflexão crucial sobre como o cinema lida com a dor e a catástrofe. Na coletiva de imprensa em Brasília, ao afirmar que nunca poderia filmar um documentário sobre as enchentes por se tratar de “imagens abjetas”, ele revela sua preferência por um tipo de cinema que não busca o didatismo ou o choque, mas sim a tradução de um sentimento de crise. O filme, assim, não documenta as enchentes, mas o estado de espírito que elas produziriam.

Imagens geradas por IA projetam um futuro asséptico e isolado, refletindo a segregação social e o desejo de distanciamento.

O uso de imagens geradas por inteligência artificial em Futuro Futuro é, de fato, um dos pontos mais intrigantes do filme. Elas não são apenas um recurso técnico, mas servem a um propósito narrativo e crítico, ligando o passado ao futuro em uma estética que evoca a publicidade.

Essas imagens de IA se assemelham a maquetes digitais e renders arquitetônicos de autocad, como se fossem protótipos de uma utopia de “Dubai no Terceiro Mundo”. Elas refletem a aspiração de uma classe média que busca um modo de vida isolado e asséptico, totalmente dissociado da “rotina encantadora das ruas”.

O filme sugere que essa classe social vê na tecnologia, e especificamente na IA, não apenas um avanço, mas um projeto glamoroso de distinção. A IA não cria imagens de um futuro coletivo ou de uma comunidade, mas um espaço higienizado e despersonalizado, reforçando a ideia de que a tecnologia, nesse contexto, serve para construir bolhas e acentuar a separação social.

Assim, o filme de Pretto não apenas explora a crise de identidade, mas também a crise do desejo, mostrando como a tecnologia e a estética publicitária se unem para projetar um futuro de isolamento e exclusividade, longe de qualquer utopia.

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