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Críticas

Nouvelle Vague

A história do cinema entre o acaso, o mito e a perenidade

Por Humberto Silva | 21.12.2025 (domingo)

A história do cinema contém caminhos sinuosos; é cheia de curvas perigosas, atalhos imprevistos – muitas vezes deixa o sentimento de uma aventura errante, um “campo de batalha” (Samuel Fuller no godardiano O Demônio das Onze Horas) no qual são enfrentados moinhos de vento. Obras-primas que deslumbram numa primeira visada podem cair no esquecimento duas ou três gerações à frente. Obras não tão lembradas quando lançadas, anos depois podem ser “descobertas” como se fossem tesouros perdidos nas brumas do tempo.

Nesses extremos há inegável exagero retórico, mas também a percepção de que os humores do tempo são imperscrutáveis. De modo que, no afunilamento das obras cinematográficas com a passagem dos anos – nisso o significado de fundo da palavra “clássico” sem que se a confunda como o movediço significado de “moderno” –, entre as que ficam e as que são esquecidas restariam poucas obras cobertas pela perenidade. Difícil considerar o cinema como arte, e com ele a sobrevivência da civilização como hoje ainda a conhecemos, se alguns poucos filmes desse afunilamento forem apagados da história (Como se Escreve a História? pergunta afinal o historiador Paul Veyne). Caso haja no futuro, obviamente, algum sentido em falar de história seguindo a indagação levantada por Veyne.

Acossado, de Jean-Luc Godard, está entre essas poucas obras fílmicas, “clássicas”, pois, que tornam possível uma escrita da história do cinema. Não creio que Veyne discordaria dessa afirmação. Mas, interessante ver nesse filme – como em outros poucos entre milhares lançados todo ano em todo mundo – o quanto nele se pode aplicar este verso do poeta Fernando Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”, do poema Ulisses, no livro Mensagem.

Em Nouvelle Vague, Richard Linklater observa como o cinema fabrica seus próprios mitos.

Como mito, Acossado se oferece, com o sentido profundo de sacrifício, um presente portanto, para que Richard Linklater nos ofereça sua Nouvelle Vague. Marco, nas palavras do historiador de cinema Michel Marie algo como filme manifesto do mais transgressivo, irreverente e influente movimento na história do cinema (a Nouvelle Vague impulsionou novas ondas na Tchecoslováquia, no Japão, no Brasil e alhures), Acossado está igualmente na origem do mito Godard.

Em entrevistas, Linklater realça que Acossado e Godard são figuras míticas e que o mito se apresenta de maneira distinta a quem dele se aproxima: cada qual tem para si próprio uma apreensão subjetiva do mito. Assim sendo, em Nouvelle Vague ele exibe o que para ele são os mitos Acossado e Jean-Luc Godard.

Isso pode trazer como implicação uma reverência com o sentido negativo que essa palavra possa comportar. Entretanto, vejamos Fernando Pessoa. O mito engana ao se lhe atribuir uma existência em desacordo com a realidade efetiva do mundo. Ou seja, racionalmente o mito é um engodo, uma fraude, uma projeção imaginária de como gostaríamos que a realidade fosse (recomendaria enormemente a esse respeito a leitura de A imaginação, de Jean-Paul Sartre). Apenas o deslumbramento, o encantamento, o feitiço nos levam a crer que o mito seja mais do que realmente possa ser.

De sorte que Acossado é um filme como tantos outros lançados na França em 1960. Linklater, com isso, não teria feito outra coisa senão mostrar que todos os contratempos, lances de acaso, escolhas improvisadas, esquisitices inadvertidas godardianas poderiam, como num jogo de azar, redundar em fracasso: O Pequeno Soldado (proibido pela censura por tratar do polêmico tema da Guerra da Argélia, foi lançado três anos depois; na ordem de lançamentos, pois, acaba sendo o terceiro Godard), filmado imediatamente após Acossado, foi um fracasso comercial, mas para a história do cinema é reconhecidamente um legítimo Godard à medida que com este último forjou-se o mito Godard.

Se o mito é um engodo, uma fraude – em suma: o NADA nos dizeres do poeta – e assim nos ilude quanto ao que realmente ele é, por outro lado no mito os mais diminutos detalhes, fagulhas, clareiam o que sem estes restariam a escuridão. A centelha no mito não é mero lampejo que se apaga rapidamente, mas algo que desencadeia toda sorte de acontecimentos em sentido tão mais amplo possível quanto desmedido.

Entre Acossado e Nouvelle Vague, o cinema revela sua vocação para a errância histórica.

Em suma, o TUDO, a se considerar o mito, pode decorrer de casual fagulha. Fagulha esta que faz com que Acossado não seja só mais um filme como tantos outros lançados na França e no mundo em 1960: “A realidade não tem continuidade”, diz Godard em Nouvelle Vague, e assim um jump cut, por conseguinte, não é só um mero exercício de estilo inscrito num erro de raccord: a história do cinema cuidou de fazer dessa afirmação uma assertiva verdadeira – um “erro de continuidade” jamais teria a desmedida atenção que a história lhe deu e que foi devidamente acolhida por Linklater.

Se assistirmos a Nouvelle Vague e levarmos em conta o que Linklater quis com esse filme a partir de declarações que deu em entrevistas, o mais importante é ter presente o quanto a história do cinema segue caminho errante. Mas na errância o processo de realização de um filme se oferece para que possamos apreender o imperscrutável destino de uma obra cinematográfica.

Sim, mas e o próprio filme de Linklater? Sua Nouvelle Vague é uma realização de nosso tempo, uma produção internacional. Com circulação em badalados festivais e indicação ao Globo de Ouro, é uma produção cult-mainstream. Feito, portanto, em circunstâncias e com finalidade opostas ao que moveu Godard. Idiossincrático reconhecidamente, creio que ele sequer o assistiria – tomaria no máximo conhecimento desdenhoso de sua realização. Não subestimo, contudo, que para as novas gerações vale ver, para que não caiam no esquecimento e a escrita da história perca sentido, os riscos e desafios que a geração Nouvelle Vague tomou para si e que se cristalizou nos mitos Acossado e Godard.

Não imagino minimamente, no mundo de hoje, Linklater assumindo a trangressividade de um Godard. Isoladamente e em termos geracionais, inclusive, seria um contrassenso, um maneirismo descabido emular Godard, romper com protocolos e fazer sua Nouvelle Vague circular tendo como horizonte premiações no circuito cult-mainstream.

Mas, sim, no mundo de hoje sua Nouvelle Vague exibe que o cinema oferece (sacrifica) tantos outros caminhos além do que ele próprio tomou para fazer esse filme. Igual e subliminarmente, exibe que cada época se integra ao movimento da história, o qual por sua vez pode ser mitificado e se servir para ser contado às gerações porvir, como Richard Linklater o fez com sua Nouvelle Vague.

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