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Críticas

Amor à Flor da Pele

Milagrosamente preparados para amar

Por Luiz Joaquim | 27.05.2007 (domingo)

– texto originalmente escrito em 29 jun. 2001

Falando de um modo grosseiro, geralmente, quando vamos ao cinema, damos de cara com um grupo de personagens na telona que se encontra pronto para resolver toda sorte de problemas (corriqueiros ou não) dentro de um espaço de tempo, em média, de 100 minutos. Como, na realidade, muito pouco coisa na vida se resolve assim, de forma tão rápida, o cinema toma a liberdade de nos apresentar o perfil de seus personagens de maneira condensada. Traduzido em síntese pela fala de outro personagem. Assim fica mais fácil de entender e decodificar a ação ou reação de fulano contra beltrano.

Ao assistir Amor À Flor da Pele (In The Mood For Love, China, 2000), de Wong Kar-Wai, o espectador é convidado a conhecer Su (Maggie Cheng) e Chow (Tony Leung). Mas a perspectiva de quem está sentado na poltrona não vai ser a de um juiz que preconcebe a sentença do amargurado casal. A nossa visão será sim a de uma testemunha. Testemunha que acompanha o nascimento do amor entre duas pessoas pressionadas pela aflição da traição. E como mensurar a dor de uma traição? Pior… como mostrar em imagens esse monstro agonizante? Kar-Wai faz acreditar que um caldeirão onde os ingredientes são culpa, (con)tensão e desejo – emoldurados pela mais fina luz – ajudam a formular a dimensão apropriada deste sofrimento.

Numa Hong Kong chuvosa dos anos 60, embalada por boleros na voz de Nat King Cole, Su e Chow estão mudando para um mesmo prédio, onde serão vizinhos e, por coincidência (!?), a mudança de ambos chega no mesmo dia e hora. O tumulto faz com que os pertences dos dois se misturem, como num prenúncio alertando-os sobre o laço apertado que vai empurrar um ao outro.

O nó desse laço e dado pelo marido de Su e pela e esposa de Chow. Depois de comprovar o caso entre os respectivos companheiros, Su e Chow iniciam um relacionamento semelhante ao de dois náufragos, afundando num mar de desorientação. Nesse ínterim, enquanto um tenta se sustentar no outro, Kar-Wai vai brincando com a infinita possibilidade de intensificar a dor por conta da movimentação ou enquadramento de sua câmera, sem esquecer a pontuação da marcante música comandada por um violino (que você pode ouvir em www.wkw-inthemoodforlove.com/eng/homepg/homepg.asp).

Cautelosa, a produção não deixa escapar nenhum detalhe – desde o figurino até o estilo do penteado de Maggie Cheng – que possa destoar da postura de vida de cada um dos personagens. Da mesma forma que as roupas de Su não passam despercebidas (seu visual exterior é impecável), ninguém deixa de notar que aquela alma contraída tem o cuidado de manter discrição sobre o embaraço que lhe carcomina o interior. Assim como Chow, ela se mostra-se aparentemente impassível. Mas é bem fácil entrever o que flutua entre os dois.

Há um still do filme que o traduz muito bem. Su está encostada numa parede. Com a cabeça baixa e resignada com o destino, ela se encontra a pouco mais de um metro de Chow, que também fuma cabisbaixo e quieto. Segurando a ponta dos dedos, Su é a imagem bruta da mulher desampara. Sua fragilidade é tocante. Chow, por sua vez, representa um homem destituído de auto-estima para tomar qualquer atitude um pouco mais audaciosa.

Se a direção de arte é cuidadosa, a lente do diretor de fotografia Christopher Doyle (que levou o prêmio de contribuição técnica em Cannes 2000) não deixa por menos. Pautadas pelo peculiar enquadramento de Kar-Wai, as imagens de Amor À Flor da Pele sobrepõem-se ao seu significado primário de cognição. Aqui, um relógio Siemens informam muito mais que apenas as horas. O desenho da fumaça expelida pelo cigarro de Chow, enquanto ele desenha quadrinhos de kung-fu, sugere bem mais que um traço disforme no ar.

Uma das estratégias de Kar-Wai para envolver o espectador no universo do casal traído foi simples e eficaz. Ele não dá rosto nem para o marido de Su, nem para a esposa de Chow. O máximo que escutamos são as vozes dos traidores interlocutando com os protagonistas. Isso desvia, totalmente, nossa atenção para a expressão dos atores principais. Será que é por isso que não tiro da cabeça a idéia de que o boca de Maggie Cheng é uma das mais delicadas já dispostas numa película?

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