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Críticas

Baixio das Bestas

O tempo, a usina, a moral

Por Luiz Joaquim | 11.05.2007 (sexta-feira)

Será “Baixio das Bestas” (Brasil, 2007), segundo longa-metragem de Cláudio Assis e entrando hoje em cartaz, o mais pernambucano dos filmes na recente produção local? Embora essa não seja a mais pertinente das questão aqui, é provável que sim (aguardemos “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas, em novembro).

Isso porque é possível que qualquer nativo do Estado com o mínimo de informação sobre sua cultura popular não esqueça das imagens de encher os olhos captadas pela câmera de Lula Carvalho, filho do diretor de fotografia Walter Carvalho, observando as evoluções do Maracatu Estrela Brilhante na nossa Zona da Mata.

Também não esquecerá da plástica melancólica estampada no rosto dos trabalhadores na caçamba do caminhão voltando da roça (ou indo) para cortar a cana, ou ainda a imagem da própria cana-de-açúcar dançando ao vento sob uma trilha sonora que empresta gravidade às relações humanas e inumanas por trás da dependência dessa monocultura.

À propósito das relações inumanas, ou bestiais, Assis parece atestar aqui o quão elas estão intrinsecamente ligadas à degradação social. Logo na abertura, escutamos uma voz lembrando algo como “o tempo engole o engenho, e o tempo engole a mim”, e é a imagem de uma usina inativa numa cidadezinha canavieira que pontua a depreciação moral de seus habitantes.

Na galeria das ‘bestas humanas’ estão o velho Heitor (Fernando Teixeira), que explora a neta de 13 anos – ou filha, como comentam no cidade – Auxiliadora (Mariah Teixeira), exibindo-a nua aos onanistas sob a sombra da cruz da igrejinha da cidade para ganhar uns trocados.

Temos também os agroboys Cilinho (China), Esdras (Samuel Vieira) e Cícero (Caio Blat), que passa a semana estudando no Recife e nos finais de semana volta ao interior para dormir, se embebedar, dar tiros a esmo, promover orgias, estuprar e espancar prostitutas até o desfalecimento delas (Dira Paes, Hermila Guedes, Marcélia Cartaxo, Conceição Camarote), tudo acompanhado pelo seu ainda mais inconseqüente e violento amigo Everardo (Matheus Nachtergaele).

O que parece ofensivo e inquestionavelmente desagradável aqui em “Baixio…” é, na realidade, um grito de indignação da equipe criadora dessa obra, e de Assis em particular. Sempre que apresenta o filme, o diretor brada: “Quem não reage, rasteja”. E em meio a explícita violência, física e psicológica, que predomina entre os vermes da periferia na cidade morta, parece não haver esperança quando vemos, em nome da sobrevivência, o ciclo recomeçar no rosto maquiado de Auxiliadora.

Ainda assim, paradoxalmente, Assis mostra a beleza do maracatu brotar desse mesmo universo onde o absoluto desprezo pelo próximo predomina nas relações. Nesse sentido, a idéia de “pernambucanidade” ganha aqui um novo verniz. Assustador, mas honesto. Na intenção de esgarçar esta face violenta na Zona da Mata, “Baixio das Bestas” se aproxima de outras grandes importantes obras do cinema mundial. Não é por outro motivo que o filme impressionou em outras terras como Roterdã (onde levou o troféu Tigre de melhor filme), ou Paris (onde Assis foi eleito o melhor diretor de um festival para filmes brasileiros).

Por mais distinta que possa parecer a relação da produção pernambucana com o documentário “Roger e Me”, no qual Michael Moore investiga a degradação do município de Flint com o fechamento da fábrica da Ford, ela não é descabida. E por mais distante que possa ser a realidade da classe media parisiense com a da nossa Zona da Mata, não é exagero resgatar a brutalidade de “Irreversível”, de Gaspar Noé, quando lembramos de sua assertiva: “Le temps détruit tout”, ou, o tempo destrói a tudo. Isto inclui a usina, as pessoas e a moral.

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