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Críticas

Inimigos Públicos

Moral x lei

Por Luiz Joaquim | 24.07.2009 (sexta-feira)

Em uma das boas cenas de “Inimigos Públicos” (Public Enemies, EUA, 2009), novo filme de Michael Mann que estreia hoje, John Dillinger (Johnny Depp), um dos “inimigos públicos” do título, está em um cinema. Ele assiste ao longa-metragem “Vencido pela Lei” (Manhattan Melodrama , EUA,1934). Ao ver a derrocada de Clark Gable, no papel de um bandido no filme, John reage com a falta de desenvoltura que lhe é peculiar e esboça um sorriso tímido no canto da boca. A fala de Gable reflete exatamente o que Dillinger sente, mas talvez não saiba verbalizar, a respeito de seu futuro como autêntico fora da lei e como ele deveria se posicionar diante das incertezas do mundo.

O tom de cumplicidade entre Dillinger e o personagem cínico de Gable sugere um curioso problema com o uso do recurso metalinguístico: e se o filme projetado dentro do filme for mais atraente que o trabalho que nós, espectadores, estamos vendo? Godard elaborou uma sequência parecida em “Viver a Vida” (Vivre sa Vie: Film en Douze Tableaux,França,1962), que não abre brecha para tal dúvida. E se o questionamento surge em “Inimigos Públicos”, é porque algo desanda ao longo de seus 140 minutos. Na superfície, Mann propõe um interessante embate entre moral x lei em tempos dominados pela crise vinda da Grande Depressão de 1929 e seu desdobramento social: bandidos que roubam bancos e matam policiais em plena luz do dia sob alcunhas excêntricas, como Pretty Boy Floyd e Baby Face Nelson.

A vontade do diretor de encenar suas obsessões temáticas, de personagens que se (re)conhecem na vivência no submundo do crime, como Tom Cruise em “Colateral” (Collateral, EUA, 2004), dá margem para um filme em completo acordo com seu tema. A obra narra os últimos dias de Dillinger, bandido que, na década de 1930, era figura presente na lista de criminosos mais procurados. Melvin Purvis (Christian Bale), que interpretou recentemente Batman, encarna agora outro justiceiro, um policial que precisa prender Dillinger.

O produto final, mesmo sugerindo em algumas situações uma (falsa) sensação de liberdade narrativa, e uma leve indicação de uma dimensão ambígua entre Dillinger e Purvis, não ultrapassa os limites prefigurados de uma suposta codificação do filme de gênero, o gângster. Ao retirar essa dimensão cinéfila, descrita no início do texto, do filme de Michael Mann, resta um trabalho que aponta a todo instante para a excelência técnica das sequências de ação. Essas são construídas com a beleza típica de um cinema que preza mais pelo realismo atingido a partir dos artifícios cenográficos, da edição de som e da montagem, para ficar nos elementos mais superficiais, do que pelo poder da encenação dentro do plano ou do alcance dramático do silêncio. É, por exemplo, um trabalho que trilha no caminho oposto do filme ganhador do Oscar de 2008, “Onde os fracos não têm vez” (No Country for Old Men, EUA, 2007), dos irmãos Coen.

O trabalho de som, por exemplo, transforma as várias cenas de tiroteio, num conflito que parece acontecer bem ali, no cinema. Ou ainda o trabalho da fotografia, que sugere um interessante subtexto a partir do que escolhe iluminar (ou deixar imerso em sombras). Numa das cenas do casal protagonista, Marion Cotillard (pode não parecer, mas ela atuou em “Piaf”), suposto interesse romântico de Dillinger, tem seu rosto cuidadosamente coberto por sombras, enquanto ele diz o quanto à ama (a fotografia traduz uma possível falta de importância dela diante da revelação de Dillinger). A fotografia, assinada por Dante Spinotti, cria uma ambiência soturna e codificada a partir das características do noir: fortes contrastes entre luz e sombra e rostos pouco iluminados, gerando certa ambiguidade moral.

O filme se passa na Chicago dos anos 1930. Mas não é pela geografia dessa cidade que o olhar quase sempre trêmulo que a câmera de Mann se interessa. A atração recai na geografia dos rostos dos personagens. É na dinâmica facial que o diretor acredita que a força de seu trabalho se encontra. Isso resulta num filme carregado de closes, que se volta ao personagem como peça central da narrativa. E o que esses personagens têm a dizer? Nada de realmente novo: um bandido que, talvez pela pouca idade, se acha melhor que os policiais, e que no final será punido; policiais meio tapados, que reclamam da falta de material para prender o inimigo público número 1, Dillinger; e o par romântico, o casal que se beija ao som de melodias de um romantismo barato.

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