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Chen Kaige e a Quinta Geração do cinema chinês

Um cineasta da exuberância visual e do humanismo.

Por Humberto Silva | 27.02.2023 (segunda-feira)

– na foto acima, Chen Kaige (e) e o diretor de fotografia Gu-Chang-Wei no set de O Rei da Crianças (1988)

A Revolução Cultural implementada por Mao Tse-tung a partir de 1966 foi um dos momentos mais polêmicos e traumáticos na história recente da China. A rígida política cultural posta em prática pelo maoismo, cujo objetivo era apagar a antiga cultura chinesa e eliminar resquícios de capitalismo por ventura sobreviventes após a revolução de 1949, teve enorme repercussão no ocidente (o maoismo estimulou, na França, as realizações do Grupo Dziga Vertov, coletivo criado por Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin). De sorte que, seguindo as determinações da Revolução Cultural, o Instituto de Cinema de Pequim foi fechado. Em decorrência, enquanto vigorou a política cultural maoísta, a produção cinematográfica na China minguou: as escassas fitas produzidas no período eram voltadas para a propaganda ideológica.

Com a morte de Mao em 1976, Deng Xiaoping assumiu o poder e deu início a um programa (Boluam Fanzheng) visando corrigir os erros da Revolução Cultural. Com isso, o próprio Partido Comunista Chinês considerou oficialmente a política cultural implementada por Mao o retrocesso mais severo pelo qual o país passou após a revolução. No movimento que levou a uma nova era na história cultural da China, em 1978 o Instituto de Cinema de Pequim foi reaberto. É então que um grupo de jovens tomou a frente e deu início ao que ficou conhecido como a Quinta Geração do cinema chinês. Esta geração, recém saída do curso de cinema do Instituto, será responsável por colocar algumas fitas chinesas no mapa da cinematografia mundial. Entre os nomes mais destacados da Quinta Geração encontra-se Chen Kaige, que com Adeus, minha concubina (1993) será o primeiro realizador do oriente, fora do Japão, a levar a Palma de Ouro no Festival de Cannes (Inequívoco selo de legitimidade no jogo da dominação cultural).

“Adeus, Minha Concubina”. Premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 1993.

Formado pelo Instituto de Cinema de Pequim em 1982, Kaige, ao lado de Zhang Yimou (premiado com o Urso de Ouro em Berlim em 1988 por O sorgo vermelho e com o Leão de Prata em Veneza em 1991 por Lanternas vermelhas) e Tian Zhuangzhuang (o menos conhecido dos três, enfrentará dificuldades com seus projetos: mesmo com a fim da Revolução Cultural, será fortemente censurado), sob os auspícios do Boluam Fanzheng, dará forma a obras em que se podem notar reflexos tardios tanto da Nouvelle Vague francesa como do Cinema Novo brasileiro. Nos seus primeiros filmes, Terra amarela (1984), A grande parada (1986), O rei das crianças (1987) e A vida por um fio (1991), antes portanto de Adeus, minha concubina, o acento no ambiente rural marcado pela pobreza da população, pela paisagem desértica, árida, pelo drama de personagens oprimidos por forças políticas das quais lhes escapam o sentido e pela remissão a marcos na história do país: a guerra sino-japonesa às vésperas da Segunda Guerra, a Revolução Chinesa, que levou Mao ao poder, e a Revolução Cultural.

Sobre Kaige, importante destacar que seus primeiros filmes são fortemente marcados por sua vida pessoal. Seu pai foi o cineasta Chen Huai´ai, conhecido por ter trabalhado na realização de películas de propaganda para o regime comunista antes da Revolução Cultural; Canção de juventude (1959) é a esse respeito emblemática. Contudo, a abordagem que dava em suas tramas era contrária à ortodoxia pregada por Mao. Huai´ai, com isso, em 1966 foi delatado pelo próprio filho e acusado de inimigo do povo. Assim sendo, foi condenado a trabalhos forçados nos tenebrosos campos de reeducação chineses. O adolescente Kaige foi entusiasta da política maoísta e, no fervor revolucionário e encorajado por professores, não teve prurido para entregar o pai às autoridades, mesmo sabendo as consequências de seu gesto.

“A Vida Por Um Fio” (1992). A cegueira pode ser vista como um símbolo da falta de visão de Kaige.

Anos depois, ele se arrependeu e seu arrependimento se vê presente de modo simbólico em A vida por um fio. Nesse filme, na forma de fábula, um velho trovador cego crê que encontrará o segredo para voltar a enxergar quando for quebrada a milésima corda de seu banjo. A cegueira simboliza a própria carência de visão de Kaige, que, nos anos de Revolução Cultural, foi tomado pelo fanatismo ideológico que trouxe como consequência denunciar o pai à Guarda Vermelha. De modo explícito, o clima de terror e coação ideológica nos anos da Revolução Cultural, com a delação de amantes num espetáculo público, é um dos temas de mais forte impacto em Adeus, minha concubina

Kaige, de fato, até Adeus, minha concubina, é dono de uma filmografia notável, de algum modo hoje obscurecida. Seus primeiros filmes, que o identificam à Quinta Geração do cinema chinês, colocam-no efetivamente entre os maiores realizadores do cinema âmbito mundial entre meados de 1980 e início da década de 1990. Foi nesse intervalo de tempo que os principais festivais de cinema no mundo projetaram a “nova onda chinesa”.

Sob esse aspecto, a “nova onda chinesa” com a Quinta Geração representa um momento efetivamente marcante no cinema mundial. As imagens vistas, o modo de se conceber a narrativa, os contrastes sociais, e de inserir personagens num ambiente praticamente ignorado fora da China têm, para os grandes festivais (Cannes, Veneza, Berlim…), paralelo na explosão do Cinema Novo brasileiro na década de 1960. A Quinta Geração chinesa faz valer o que o próprio Kaige afirmou em 1997 em entrevista por conta do lançamento de Lua sedutora (1996), seu filme seguinte a Adeus, minha concubina: “Não faço filmes para agradar as massas; minha preocupação é com a realização de filmes altamente artísticos” .

“O Imperador e o Assassino” (1999) é um espetáculo visual feito para o gosto ocidental.

Mas, um dado que, para mim, é um ponto de inflexão em sua carreira: a consagração mundial com a realização e premiação de Adeus, minha concubina. Nesse filme, enormemente cultuado, Kaige se mantém fiel a preceitos, princípios temáticos e concepção de cinema que caracterizam seus primeiros filmes. O nexo entre drama individual e injunções políticas está presente de modo a que o espectador possa apreender as grandes transformações na China ao longo de meio século, e como essas transformações afetaram a vida das pessoas de maneira trágica. Não obstante, Adeus, minha concubina é o primeiro filme de Kaige no qual a monumentalização, a espetacularização, o apelo melodramático, a narrativa épica ganham espaço em proveito da contenção, da opção por elipses, alusões e do grande poder simbólico em suas obras de início de carreira.

Adeus, minha concubina é o apogeu de Kaige aos olhos do ocidente. Mas, simultaneamente, é uma guinada na qual sua obra posterior nega o que afirmou na entrevista citada acima. Entendo que seus filmes posteriores, com ele possivelmente deslumbrado pela fama adquirida, foram concebidos com a presunção de uma agradabilidade prévia às expectativas das plateias dos grandes festivais e com as possibilidades de circulação no mercado. É assim que vejo, na sequência de Lua sedutora, O Imperador e o Assassino (1999) e Mata-me de prazer (2002). O primeiro é um espetáculo visual e opulento para encanto de olhos ocidentalizados, em que a história chinesa é tão só pano de fundo (ornamento) para sua milenar cultura, pois a narrativa é praticamente inapreensível para o espectador com poucas informações sobre a dinastia Chin, no século III a.C., no processo de unificação da China. Já o segundo assinala efetivamente que Kaige cedeu ao fetiche do mercado: trata-se de uma produção norte-americana distribuída pela Metro-Goldwyn e, claro, falada em inglês.

“Mata-me de Prazer” (2002). Chen Kaige em Hollywood.

Nesses filmes está ausente o teor político de suas obras de juventude. Neles, a preocupação com a inserção no mercado, com a espetacularização, com a monumentalização. O fecho da guinada em sua carreira é assinar, ao lado de Tsui Hark e Dante Lam (estes conhecidos por obras de ação, artes marciais e tais), o megaespetáculo A batalha do lago Changjin (2021). A maior bilheteria de um filme realizado na China, concebido conforme toda a engrenagem de uma produção em escala industrial. Um espetáculo, enfim, a ser consumido pelas grandes plateias que, por acaso, são lembradas (fetiche publicitário) da presença chinesa na guerra da Coreia. Enquanto espetáculo, conquanto se leve em consideração uma disputa com as produções nos grandes estúdios norte-americanos, entende-se a decisão de Kaige: o resultado nas bilheterias diz que foi bem sucedido. O que não cabe é hoje levar a sério que ele não deseja fazer filmes massificados e sim altamente artísticos.

Se há um Kaige que, infelizmente, se deslumbrou e cedeu ao espetáculo, aos apelos do mercado e do cinema massificado – o que com certeza torna seu nome imensamente conhecido –, há um Kaige, infeliz e igualmente pouco conhecido, que o torna um dos grandes diretores da história do cinema. Trata-se do realizador de Terra amarela, que jamais foi exibido e provavelmente jamais o será num multiplex. São escolhas que, no plano pessoal, um grande artista pode fazer. Não me cabe julgar suas escolhas, mas tão só constatá-las e exibi-las.

Terra amarela, realmente, anuncia uma maneira de conceber o cinema fora das expectativas ocidentais. Um cinema capaz de nos tirar do conforto das imagens previsíveis, da repetição do mesmo, do que em artigo amplamente conhecido, referindo-se à musica, Theodor Adorno chamou de “o fetichismo da música e a regressão da audição” (Tudo o que, em suma, se vê em A batalha do lago Changjin). Terra amarela foca a trama na província de Shaanxi em 1939, numa região montanhosa habitada por camponeses que preservam hábitos ancestrais: as meninas se casam aos 14 anos com um homem escolhido pelo pai, num rito em que elas tinham o rosto coberto por um véu vermelho completamente vedado. Assim elas apenas viam o marido quando iam para a cama consumar o enlace.

“Terra Aamarela” (1984). Um Chen Kaige quase secreto.

Isolados, os camponeses de Shaanxi não sabiam o que se passava além das montanhas que cercavam o povoado em que viviam; não sabiam que a China estava em guerra com o Japão, que havia ocupado a Manchúria e criado um estado fantoche chamado Manchukuo; nem sabiam que no próprio país os nacionalistas que os governavam, sob a batuta de Chiang Kai-shek, haviam feito uma trégua com os comunistas, liderados por Mao Tse-tung, para juntos combaterem o inimigo japonês. É nessa ocasião que um soldado do Exército da Oitava Rota (criado a partir do Exército Vermelho e comandado por Zhu De) é enviado a Shaanxi com a missão de colher canções folclóricas do povoado e com elas, o Xintianyou, estimular o moral da tropa. Um aspecto que salta os olhos em Terra amarela, e que guarda pontos de contato com Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, é sobre a importância do cancioneiro na condução da narrativa. Fio condutor na trama, as canções evocam o estado de espírito daquele povoado distante dos acontecimentos que convulsionavam o país. Xintianyou pode ser traduzido como “vagando no céu”.

No povoado, então, o soldado comunista fica hospedado numa casa extremamente simples, habitada por um viúvo de meia idade, sua filha prestes a completar 14 anos e um filho mais novo (o caçula perdeu a voz e se comunica apenas por meio da canção). Entre os quatro se estabelece uma relação terna, de cumplicidade, em que o jovem soldado toma conhecimento dos hábitos culturais do povoado; em contrapartida, ele fala sobre a vida e os ideais de um soldado comunista. Essas conversas são ouvidas com atenção pela jovem adolescente, que se encanta com a possibilidade de um mundo diferente daquele em que ela vive (todos os dias carrega pesados baldes d´água colhida do Huang He, o rio Amarelo) ao se engajar como soldada comunista.

Kaige conduz a narrativa de modo lento, melancólico, contemplativo, explorando planos abertos em que se destacam a presença diminuta do ser humano diante da paisagem montanhosa. Com essa opção, os diálogos são rarefeitos, lacunares, prosaicos, sem tensões, pois, e cobertos pelas canções. Realizada a missão, o soldado comunista retorna à cidade de Yan´an, onde fica o quartel-general do exército. Antes, porém, sensibilizado com o desejo da adolescente de se engajar como soldada, ele promete voltar e buscá-la. Nesse entretempo, contudo, ela é entregue pelo pai a um marido conforme os ritos ancestrais. Infeliz, ela foge do marido, tenta cruzar a perigosa correnteza do rio Amarelo e se engajar entre os comunistas. Seu destino, trágico, é filmado de forma alusiva e comovente: enquadramento fechado no rio, o borborejar da água e o véu vermelho boiando.

“A Grande Parada” (1986) faz uma crítica à ortodoxia maoísta.

Em Terra amarela o mundo político é exibido de maneira sutil. Os comunistas não estão no poder e o encantamento da adolescente mostraria como o regime traria uma vida melhor às duras condições em que vivia. Não há, assim, um viés crítico com respeito a Mao, à ideologia comunista; pelo contrário: o soldado comunista, retratado com humanismo, expressa sensibilidade diante da pobreza a que assiste. Ainda fora do poder à época em que a trama se passa, uma mensagem subliminar, talvez, seja sobre o quanto o soldado seria alheio às entranhas do jogo político (alheamento que poderia refletir a própria condição de Kaige durante a Revolução Cultural); mas, bem entendido, isso exatamente não aparece no filme. De qualquer forma, Terra amarela segue o ritmo das entrelinhas, dos subentendidos, e assim revela o contraste em mundos opacos um ao outro e o quanto a presença estrangeira é um elemento disruptivo: a jovem que se rebela faz ver como o mundo isolado em que vivia, que não se modifica com o alternar das estações, é frágil e sujeito a erupções – o casuísmo com a presença do soldado comunista foi tão só ocasião.

Após Terra amarela, Kaige foi mais explícito em seu viés crítico. A grande parada e O rei das crianças abordam diretamente os excessos da disciplina militar e a ortodoxia maoísta. No primeiro, ao tratar do rígido treinamento militar e a frustração de jovens que não superam seus limites físicos e psicológicos e assim, humilhados, são excluídos da participação na grande parada. Já o segundo, traz à baila como o ensino da ortodoxia numa zona rural, para alunos que sequer dispõem de cadernos para anotações, um circunspecto professor de ocasião, em missão delegada pelas autoridades no poder, se expõe a conflitos insondáveis.

Com essas obras de início de carreira, realizadas quando a China passava pelo degelo maoísta, se tem um diretor seguro de seu papel e que toma o cinema como meio para exibir contrastes, contradições em uma sociedade extremamente complexa a nossos olhos ocidentalizados – por isso uma realidade tão fascinante quanto desconcertante, que exige imersão sem garantias de apreensão do que se esconde em suas profundezas. Nesse sentido, ainda que se possa entender o porquê da guinada em sua carreira após Adeus, minha concubina, tenho em mira que Chen Kaige faz jus à condição de grande realizador por nos propiciar a experiência de ver a exuberância visual, e um profundo humanismo, de obras como Terra amarela, A grande parada, O rei das crianças e A vida por um fio.

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