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Críticas

O Retorno

Um tesouro russo. De poder incisivo na psicologia juvenil

Por Felipe Berardo | 25.10.2019 (sexta-feira)

– publicado em 6 de março de 2004 no jornal Folha de Pernambuco.

Em seu dramático percurso do real para o alegórico, o filme de estréia de Andrey Zvyagintsev, O retorno (Vozvrashcheniye, Rússia, 2003), que inicia hoje no Cinema da Fundação, racha a cabeça do espectador com seu final simbólico. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza 2003, a obra reflete em seus últimos minutos toda uma nova perspectiva para os eventos que os precedem. Que fique claro que não estamos falando de nada parecido com as obras de M. Night Shyamalan (como O sexto sentido), pois aqui o que importa não é a revelação final, mas sim o processo de transformação pelos quais os personagens o vivenciaram.

Estes protagonistas são os irmãos Andrey (Vladimir Garin) e Ivan (Ivan Dobronravov). Ambos recebem a visita do pai (Konstantin Lavronenko) que havia deixado a família há 12 anos. Ele reaparece quase sequestrando os filhos para uma longa viagem de pescaria. Cada um reage ao seu modo a esse processo pelo qual o pai busca reaproximar-se.

Na viagem, vemos Andrey agir como se esperando receber aprovação do pai a cada ordem que recebe, enquanto o caçula Ivan revela uma corajosa revolta contra a figura daquele estranho que se diz seu pai. A densidade entre o relacionamento de todos eles é desconcertante. O diretor Zvyagintsev conseguiu extrair uma performance simpática e inteligente dos atores mirins, sem fazê-los parecer precoces ou caricatos.

O percurso dos garotos é o percurso do amadurecimento. A figura do pai até então ausente, é a de um homem assustadoramente autoritário que quase nunca demonstra afeição. Com paciência e acuidade, o filme desenha uma tortuosa dinâmica nesse relacionamento a medida em que os meninos tentam se conectar a sombria e impositiva figura paterna. O pequeno período que convivem juntos levanta os mais variados tipos de questionamentos entre pai e filho e, na medida em que a viagem acontece, as respostas ganham várias conotações.

A pequena experiência de obediência oferecida por esse pai funciona nos garotos como uma chave que dará acesso a uma dimensão de responsabilidade e coragem dali por diante em suas vidas. Principalmente para Ivan, que logo no início do filme é acusado pelos amigos de covarde. Até ali, o garoto encontrando refúgio e acalento apenas no colo suave de sua mãe, e não em si mesmo.

Lido literalmente, ou não, “O retorno” é uma história incisiva sobre o amadurecimento infanto-juvenil. Interpretações dessa fábula, ao final, podem variar, mas ninguém duvidará do poder incisivo na psicologia juvenil dessa curiosa história russa.

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