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Festivais

77º Festival de Veneza (2020): Narciso em Férias

O cinema falado de Caetano

Por Luiz Joaquim | 07.09.2020 (segunda-feira)

O quão fascinante pode ser o cinema em suas possibilidades? Pergunta sem resposta, uma vez que tais possibilidades são infinitas em sua linguagem e, por conseguinte, em seu poder de fascinação. Mas algumas dicas dessa linguagem entregam que a imagem é algo primordial para alcançar um bom resultado, ainda que… não só ela.

Essa introdução, um tanto abstrata neste texto, é colocada apenas para discorrermos que num filme essencialmente alicerçado não pela imagem, mas pela fala de um único personagem –  como Narciso em férias (Bra.,2020), dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil -, o seu momento mais marcante, que absorve o espectador em toda a sua atenção, se dá pelo silêncio.

O silêncio acontece lá pela metade de sua duração, quando o protagonista, Caetano Veloso, diante de algumas câmeras e tendo por trás de si uma parede infinita, revê, depois de 50 anos, um marcante exemplar de 1969 da revista Manchete. A edição esteve em suas mãos pela primeira vez quando ele foi preso pelos militares pouco tempo depois da instauração do Ato Institucional Nº 5.

Naquela ocasião, a publicação lhe foi entregue pela então esposa Dedé Gadelha após o cantor ter passado semanas de isolamento social, sem comunicação com familiares e tendo, logicamente, sofrido opressão psicológica por privações de toda ordem e total desinformação sobre o motivo que o levou à detenção.

Pelo momento do silêncio, que suga o espectador naquele trecho, o que se quer ali é entrar na cabeça de Caetano. Há algo tão complexo e valioso lá dentro, na lembrança disparada pelo reencontro com a revista companheira de cela, que nem o protagonista da história consegue processá-lo em palavras. Se há um instante genuinamente novo, para além de toda a história narrada pelo cantor para as câmeras, esse instante é o do silêncio, seguido por sua lágrima que, como ele lindamente descreve previamente, representa o derramamento da alma pelos olhos.

Aquele não-som, ou seja, aquela imagem valendo-se apenas de si própria é tão reveladora e eloquente a ponto de entendermos que seu protagonista, naquele ponto, chegou a uma rememoração de algo que talvez estivesse há meio século adormecido.

Por pouco temos a chance de ouvir algo mais sobre aquilo, pois Caetano inicia o balbucio de um novo dado sobre o único militar que lhe foi generoso naquela penúria da prisão: “Ele foi preso”. Renato Terra, entretanto, simultaneamente, tenta quebrar o gelo com uma nova pergunta, o que descontrói ainda mais a fragilidade do personagem.

O mestre Eduardo Coutinho (1933-2014) dizia que por mais doloroso que seja àquele que pergunta o silencio daquele que é perguntado, é preciso tolerá-lo. É preciso. O próprio Coutinho aprendeu isso revisando sua postura em seus primeiros documentários.

Em Narciso…, nesse instante da revolução interna que corre em Caetano, a quebra da fluidez pela interferência fica tão evidente que o entrevistado pede para interromper a gravação.

A alternativa da edição é, porém, perfeita para o bem do filme. Temos o cantor interpretando Hey jude, do The Beatles. Canção que, como conta o entrevistado, lhe soava ali como o abrir dos portões do cárcere.

Mas, ainda sobre o silêncio e a lágrima de Caetano, elas não teriam o valor que possuem em Narciso… se não viessem acompanhada previamente da mais de meia hora de fala (até ali) do protagonista. É pela oratória envolvente do cantor, dando detalhes visuais daquilo que viveu, que embarcamos no drama do contexto. Assim sendo, Narciso em férias se faz valioso não apenas pelo som, nem tão pouco apenas pelo instante em que a imagem reina (o momento do silêncio), mas pelo conjunto de tudo isso, com uma história bem traduzida pelo seu autor, e bem conduzida na representação criada por Ricardo Calil e Renato Terra.

Terra, a propósito, é o nome da canção feita por Caetano a partir das imagens do nosso planeta, feitas do espaço, que ele viu nas fotos impressas na revista Manchete enquanto esteva preso.

Caetano destaca, mais de uma vez, o quanto a superstição e a ideia de coincidência lhe tomaram a cabeça naqueles dias tenebrosos. Quem sabe essas coincidências nunca tenham lhe deixado, afinal.

Narciso em férias foi colocado à disposição do mundo a partir da tarde de hoje (7) pela plataforma streaming Globoplay, tendo também sido exibido no 77º Festival de Veneza, que acontece presencialmente na Itália até 12 de setembro.

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