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Festivais

Roterdã, IFFR (2021) – A Man and a Camera

Um filme sobre o cinema como instrumento de mediação, sobre a fé no encontro, diante do improvável

Por Marcelo Ikeda | 04.06.2021 (sexta-feira)

Esse curioso documentário-de-garagem, que teve sua estreia mundial há poucos meses no CPH:DOX, é um notável representante do documentário contemporâneo, por se estruturar não num tema em si mas numa abordagem relacional. Esse filme-de-um-homem-só (utilizando a expressão da pesquisa de mestrado do cineasta Gustavo Spolidoro) parte de uma premissa bastante singular: o próprio realizador vai a uma cidade no interior da Holanda e bate à porta de pessoas desconhecidas com a câmera ligada, sem emitir nenhuma palavra, esperando ver como as pessoas reagem a esse gesto. O filme então, é um projeto de baixíssimo orçamento, firmemente calcado num dispositivo relacional.

O título do filme claramente parece nos remeter ao clássico documentário de Dziga Vertov (O Homem com uma câmera). No entanto, se Vertov buscava um método para apreender o movimento do mundo e das cidades, Hendrikx possui um objetivo claramente mais modesto: a possibilidade de um encontro por trás do artifício.

Por trás de sua estrita adesão ao dispositivo, o que é fascinante nesse filme são as muitas formas que estimulam que o espectador possa refletir sobre essa experiência. Um desses elementos são as questões éticas, ou ainda, sobre a privacidade. É curioso pensamos que o realizador opta por procurar as pessoas em suas casas, no ambiente doméstico. Em entrevistas, Hendrikx conta que, num projeto anterior, ele seguia pessoas num espaço público, nas ruas da cidade. Mas que era muito mais intimidador e invasivo, pois as pessoas não tinham para onde fugir. Agora, simplesmente as pessoas poderiam fechar a porta e se recusar a participar do jogo.

Mas há outras camadas. Filmar o inesperado, o imprevisto. Essa câmera ligada sem permissão que invade a privacidade das pessoas. Esse realizador por trás da câmera que não responde a qualquer pergunta. A insistência em permanecer filmando em silêncio e sem reação expõe as pessoas a certo constrangimento. Ou a uma sensação de distúrbio e de desconfiança (seria um assaltante? Seria um maníaco?) – fico imaginando esse filme no Brasil de hoje, em que os contextos sociais de violência quase inviabilizariam um filme desse tipo, ou penso no pequeno gesto que Marcelo Pedroso fez em Câmera escura (clique aqui para ler sobre Câmera escura), o que lhe rendeu um processo judicial. Muitas pessoas inicialmente riem mas depois começam a desconfiar. Há um desejo de inocência, como se Hendrikx fosse um menino que simplesmente propõe um jogo, uma espécie de brincadeira lúdica, sem qualquer propósito aparente. Num certo momento do filme, a câmera observa as crianças brincando livremente num quintal, aproveitando um dia de calor.

Cena de “A man and a Camera”

Em entrevistas, Hendrikx conta que bateu em mais de trezentas portas, sendo que oito o convidaram a entrar. Mesmo sendo um total desconhecido, e sem falar uma única palavra, oito pessoas o convidaram a entrar em suas casas. Hendrikx chama esse gesto de um milagre. Um encontro mediado pela câmera. Penso também em Jonas Mekas, e como ele dizia que, como não falava inglês, as filmagens com sua Bolex nos Estados Unidos eram uma forma de se conectar com as pessoas. Mas Hendrikx, quase como um robô, não esboça nenhum tipo de reação, nenhum sorriso, nenhum gesto. Fico pensando na imensa solidão de um filme como esse e em como, contra todos os prognósticos, esse homem-câmera é convidado a entrar em uma casa. Uma casa, um interior: um filme que também examina a intimidade e a privacidade do ponto de vista dos ambientes domésticos.

Não só Hendrikx-câmera é convidado a entrar como, ao fim do filme, ele parece ter feito um amigo. Todos já se sentem quase à vontade com a presença desse estranho desconhecido inofensivo. Ao final, o dono da casa precisa sair para levar o filho à escola e deixa Hendrikx-câmera em casa. Ao ficar em casa, ainda que só, o filme propõe uma inversão. Finalmente, essa câmera consegue habitar um lar, conviver com um estado de afeto. Mesmo a aparência robótica desse dispositivo-automatizado conseguiu estimular uma relação de afeto, que conseguiu superar as naturais desconfianças, o medo da exposição, a falta de retorno do convidado, a aparente falta de sentido da situação. A possibilidade de surgimento da amizade (do afeto) diante dessas circunstâncias é o que há de mais tocante nesse filme para além da mera investigação de um dispositivo. A insistência do realizador em sua missão obstinada, geralmente sem resposta, sendo por muitas vezes humilhado e agredido (até certo ponto de forma justa), curiosamente pode nos fazer associá-lo como um pastor religioso. Mas uma religião sem causa, sem promessa de fé nem paraíso eterno. Um filme sobre o cinema como instrumento de mediação, sobre a fé no encontro mesmo diante das circunstâncias mais improváveis.

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