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Festivais

45º MostraSP (2021) – Pegando a Estrada

Um Panahi mais leve e não menos político

Por Ivonete Pinto | 15.10.2021 (sexta-feira)

Doses de  originalidade dão o tom nesta estreia em longa-metragem de Panah Panahi.  Nem tanto como o filme se apresenta, mas a família na qual ele é centrado, cultiva um  humor particular. O humor de Pegando a estrada (Jaddeh Khaki, 2021), num certo sentido disfarça o sofrimento que está na base da viagem feita  de carro, percorrendo estradas de Teerã até a fronteira.

O filho mais velho do casal (Amin Simiar) está fugindo, abandonando o Irã por algo que cometeu. Os fatos não são explicitados e é preciso pescar aqui e ali alguma pista. Como por exemplo, o fato de terem vendido a casa para pagar uma fiança, o que nos leva a concluir que ele chegou a ser preso. O motivo seria político. Podemos fazer ilações, pois basta conhecer a situação política do país mesmo que superficialmente para saber do grau de opressão, de ausência de liberdade. Jafar Panahi, pai de Panah, continua com o passaporte confiscado, desde que foi julgado por ter supostamente feito um filme com imagens de manifestações contra a reeleição de Ahmadinejad, ainda em 2009. Recebeu ordem de  prisão domiciliar e foi proibido de filmar por 20 anos.  A primeira pena nunca cumpriu a rigor e a segunda menos ainda, já que lança filmes com regularidade. No exterior, bem entendido. Agora, através do filho, Panahi pode expressar também as distorções de um país que fez uma revolução há 42 anos em nome da liberdade e da justiça.

Portanto, não importa muito o motivo específico pelo qual o personagem do filho mais velho precisa deixar o Irã. Intuímos apenas – e também por pistas rápidas – que vai em  direção à fronteira com a Turquia, visto que é citado  o Lago Urmia, próximo  daquele país.

Panah Panahi, que trabalhou com o pai como montador em 3 Faces (2018),  não tem a mão pesada do pai, que algumas vezes incorreu em clichês, exagerando nas metáforas. O jovem encontrou um caminho mais sutil no roteiro, que não escancara os simbolismos, que opta por metáforas menos óbvias e faz um filme com muita leveza, a despeito do drama nele contido. Mantem-se fiel, no entanto, ao caráter político dos filmes do pai, valorizando os laços de família. Naturalmente, não há como dissociar a situação do pai e enxergarmos também uma homenagem, também uma declaração de amor filial.

Na estrada

A família de Pegando a estrada não é nada tradicional. A bordo de um utilitário carregam um cachorro doente (o cão é animal interdito na cultura islâmica), a mãe não usa hejab, apenas o lenço que cobre a cabeça, e em toda jornada as paradas não incluem a reza.

Há algumas referências que podem chamar a atenção dos cinéfilos familiarizados com os filmes de Abbas Kiarostami, como uma latinha de refrigerante, que lembra Close-up (1990). A latinha não rola, está amassada no meio da estrada, por certo querendo dizer outra coisa que no filme de Kiarostami, mas está lá, valorizada pelo plano. O próprio cenário envolvendo um carro, é recorrência conhecida dos filmes de Kiarostami, especialmente Dez (2002).

As pessoas que cruzam o caminho da família pela estrada remetem à trilogia de Koker e os caminhos tortuosos de Kiarostami. Por sua vez, o  ciclista não é afegão como O ciclista de Moshen Makhmalbaf, mas é azeri, uma etnia oriunda do Azerbaijão que igualmente sofre de preconceito no Irã.

A trilha diegética, a que é acompanhada no carro pelos personagens, tem a voz de uma mulher, o que também está fora das normas. É um interdito, como bem mostrou o curta Escondida (2020), de Jafar  Panahi, exibido na Mostra do ano passado.

O pai  está com a perna quebrada, alusão ao pai do diretor que não pode se deslocar livremente. No enredo, o elemento  diretamente implica na incapacidade de um pai ajudar seu filho para que permaneça no País.

Rayan Sarlak

Neste filme de estrada, que revela a diversidade da paisagem iraniana  ̶  de verdes montanhas ao deserto rochoso  ̶ , sobressai um elenco soberbo, onde até o cachorro interpreta bem. A atriz Pantea Panahiha, que faz a mãe, e Hasan Majuni, que faz o pai, são os únicos com experiência em atuação, com carreiras sólidas. A eles  juntam-se o rapaz em fuga e o menino vivido por Rayan Sarlak (extraordinário com seus poucos 8 anos, se tanto). Os quatro formam uma coesão de performances porque, justamente, os cineastas  e as cineastas iranianas  (é preciso lembrar de nomes como Rakhshan Bani-E’temad, Sadaf Foroughi,  Samira Makhmalbaf, e a icônica Forough Farrokhzad) sabem conjugar esta expertise como ninguém. Praticam um método que busca com que os atores profissionais alcancem o mesmo nível de espontaneidade dos não profissionais.

Na ocasião de sua passagem pela Quinzena dos Realizadores de Cannes, um crítico francês disse que o filme é “terrivelmente bem escrito” e não há expressão melhor. O roteiro é argutamente  amarrado, consegue conjugar humor em meio ao desespero dos pais na iminência de se separarem do filho. Ele fará uma travessia de risco ao encontro de um futuro incerto.

Também a decupagem é muito bem pensada. A despedida da família se dá em um plano super aberto, vemos as pessoas ao longe e sabemos o que acontece somente pelos diálogos. Trata-se de um procedimento estético de grande significado. O filme não nos permite ver o momento tão íntimo, ao mesmo tempo que opta por não dramatizar de maneira vulgar os sentimentos. A música (muleta narrativa via de regra desnecessária no cinema), que entra logo depois, não chega a comprometer a austeridade da imagem.

Um dos planos mais belos que um cinéfilo pode ter a sorte  de assistir está quase no final, o pai e o filho menor contemplando as estrelas. Não há embaraço para construir  o efeito digital  do plano, que pode soar over e desconectado com o realismo do filme. Por alguma razão, ele funciona de modo lapidar.

A Mostra de São Paulo apresentou o cinema iraniano ao Brasil há mais de 40 anos,  continua com  esta vocação. E acertando.

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