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Festivais

45ª Mostra SP (2021) – Charuto de Mel

Uma certa visão argelina

Por Ivonete Pinto | 08.11.2021 (segunda-feira)

Com Charuto de Mel (Cigare au miel, 2020) Kamir Aïnouz faz sua estreia em longas-metragens e ele tem de fato uma cara de primeiro filme. Dá a impressão que a diretora tem medo de errar na forma de abordar os temas propostos.

A diretora Kamir Aïnouz

Sua inexperiência, no entanto, pode pender a seu favor, ao menos na preocupação que teve na exibição dos corpos. Mais por um respeito solidário aos atores, principalmente em relação à atriz principal Zoé Adjani, e menos por alguma atenção aos interditos religiosos ou culturais. A diretora esteve presente na sessão comentada na Mostra, onde frisou este tratamento ao se referir à cena de sexo em que a câmera mostra apenas os rostos dos atores, em planos fechados.

O filme se passa na maior parte do tempo na França, porque é lá que vive a família de Selma, interpretada por Zoé Adjani. Os pais são argelinos que partiram do país norte-africano para fugir do fundamentalismo islâmico. O casal tem um forte discurso anticolonialista, possui grande consciência dos danos da ocupação francesa em seu país e é francamente nacionalista. Entretanto, no exílio os dois têm uma vida confortável e adaptada, usufruindo o direito de consumir bebidas alcoólicas sem reproches, ao mesmo tempo em que seguem os ditames de um comportamento ultra conservador. A filha Selma é controlada desde seus horários na rua, até as roupas que usa. Embora digam que ela tem liberdade para casar com quem quiser, a todo tempo tentam arranjar-lhe um marido de família argelina e escandalizam-se porque ela ficou sozinha com um pretendente. [spoiler] Em outra sequência, a empurram para um jantar com um executivo (argelino), que não titubeia em estuprá-la.

Há pouca sutileza, tudo é mostrado enfaticamente e isto é um traço da direção um tanto claudicante de Kamir Aïnouz, que assina o roteiro juntamente com Marc Syrigas.  O comportamento dos personagens soa às vezes contraditório até. Por exemplo, há um atropelo no roteiro quanto à decisão da mãe de Selma (Amira Casar), ginecologista formada que não recebe o respeito que deveria de seu marido (Lyès Salem) pseudamente progressista. [spolier]: ela abandona o marido e a filha para voltar à Argélia e ajudar as mulheres que não possuem atendimento de saúde por profissionais mulheres. É um gesto elogiável, que supomos estar no roteiro mais para atender ao desejo de uma mensagem política do que como evolução dramatúrgica da personagem.

Selma tem desde sempre atitude que revela uma personalidade forte, que se esforça para ser moderna e liberada. Rompe a virgindade de modo, digamos, artificial, para que o francês por quem tem interesse  não pense que é uma pudica. Bem comum que uma pós adolescente de 17 anos tenha estas ambiguidades. Comum  também que como filha de imigrantes, identifique-se como argelina com bastante ênfase, na mesma medida que vá na contramão de um padrão de comportamento argelino. Porém, é preciso muita boa vontade para não entendermos as atitudes como paradoxais.

Pôster brasileiro

Considerando que um filme começa sua narrativa no material de divulgação, chama a atenção uma das fotos promocionais de Charuto de Mel  (a que mais aparece) desdiz o discurso da diretora. Selma está com um charuto de mel na boca, numa clara imagem sexualizada da personagem. Sim, ela desperta para a sexualidade no filme, mas o simbolismo do charuto de mel, iguaria produzida pela avó na Argélia, deveria remeter a algo muito mais profundo do que o mero objeto fálico. No cartaz brasileiro, a imagem é de Selma com uma hamsá entre os lábios, como pingente de colar. O amuleto da sorte, usado tanto por judeus como por muçulmanos, traz um apelo sensual quase discrepante quanto à fala da diretora.

Entende-se que toda a abordagem seja em princípio de uma honestidade incontestável. Kamir Aïnouz nasceu na França, filha de pais argelinos como a protagonista. Estudou cinema em Los Angeles, mora em Paris e vive as diferentes culturas na pele. O projeto do filme surgiu inclusive como conclusão de curso e é louvável que queira exercer seu lugar de fala, trazendo a problemática das jovens de origem argelina para que todos nós conheçamos os conflitos culturais de um ponto de vista privilegiado.

Há dois parentescos que valem um destaque: Kamir é irmã do cearense Karim Aïnouz, cuja história errática do pai argelino de ambos os fez viverem separados.

O brasileiro trata de sua ascendência em Argelino por acidente  (2019) e na Argélia realizou o título lançado na 45ª Mostra de SP, Marinheiro das montanhas (2021). Um bonito e triste ensaio autobiográfico feito no país que pisa pela primeira vez atrás de suas raízes. A independência  da Argélia como colônia francesa é um tema que, afinal, une estes dois irmãos no tema de fundo de seus respectivos filmes.

Já Zoé Adjani é sobrinha de Isabelle Adjani, de quem herdou a pele de porcelana e a consanguinidade argelina. É ainda muito jovem e fez poucos filmes para dizer se tem como legado o talento da tia, mas a julgar por Charuto de mel, fará uma carreira promissora. Ela ilumina cada plano.

O filme tem lançamento no Brasil pela Imovision nesta quinta-feira (11).

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