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Reportagens

Rede Globo de cinema (2006)

Dissertação do carioca Pedro Butcher esgarça estratégias e operações da divisão de filmes da TV Globo.

Por Luiz Joaquim | 04.11.2021 (quinta-feira)

– originalmente publicado em 19 de abril de 2006 na Folha de Pernambuco

Que o cinema brasileiro vem reconquistando seu público no decorrer dos últimos 12 anos ninguém tem dúvida, mas o que nem todos percebem é como a criação da Globo Filmes, em 1998, interferiu nesse processo ainda em mutação. A empresa, braço da TV Globo voltada para a produção e co-produção de longas-metragens para o cinema, virou objeto de estudo da dissertação de mestrado do jornalista carioca Pedro Butcher (foto acima), para a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Com o título “A dona da história: origem da Globo Filmes e seu impacto no audiovisual brasileiro”, o trabalho chega num momento pertinente, suscitando reflexão na medida em que se sabe que a Globo Filmes, direta ou indiretamente, está vinculada à dez dos dez filmes mais visto no período a partir de 1994, que se convencionou chamar de “Retomada”. Essa presença chama a atenção para um possível hegemonia da Globo Filmes num cenário onde a toda-poderosa TV Globo, até a criação do seu braço cinematográfico, se mantinha, com raras exceções, ausente do mercado de filmes feitos no Brasil.

O que Butcher questiona (e responde) é por que razão, só 30 após sua criação, a TV Globo atinou para esse nicho, qual o caráter dessa aliança e a que interesses ela atende, e qual o efeito dessa relação no campo da estética cinematográfica e com seu público. O jornalista mostra que a iniciativa nasceu vinculada a uma crise econômica e estrutural que se abateu sobre às Organizações Globos no início dos anos 1990, quando os grandes grupos de mídia brasileiros “apostaram no crescimento da economia e na estabilidade do câmbio e se endividaram em dólar, para diversificar os negócios e aumentar a capacidade de
produção”.

O que aconteceu é que, em 2002, a Globopar – holding das Organizações Globo (que até momento excluía os jornais impressos e as emissoras de rádio e TV) – já acumulava um prejuízo de R$ 5,6 bilhões. Para resolver a questão, a Globo passou a defender a emenda constitucional que permitiria a participação do capital estrangeiro em até 30% das ações de TV aberta, rádio e jornais, transformando-os em sociedade anônima. A emenda foi aprovada e, três anos depois, a Globopar deixou ser independente e passou a fazer parte da TV Globo e da Globo.com, que estavam bem das pernas. A reestruturação permitiu a venda de 37% das ações da TV a cabo Net (responsável pela maior parte da dívida da Globopar) ao grupo mexicano Telemex salvando a empresa do naufrágio.

Interessante como Butcher relaciona a mudança de paradigmas lançando pela Globo Filmes por ocasião de seu lançamento (1998), diante da crise econômica da Globopar em 2002. No começo, a Globo Filmes apoiava-se na estratégia política da TV, cuja tônica era a “defesa do conteúdo nacional”, e era contra e emenda mencionada acima. A dissertação lembra que a empresa “divulgava a defesa de uma identidade única contra a ameaça da dominação estrangeira”. A questão, lembra Butcher é que isso “costumava omitir… que esta mesma noção tende a reproduzir o eixo vertical de um poder cultural, econômico e político…”.

E se a postura se propõe defender a nação contra um discurso estrangeiro dominante, ao mesmo tempo “…é, ele próprio, um igual poder dominante que exerce igual opressão interna, reprimindo diferenças e oposição em nome da identidade, da unidade e segurança nacional”.

CROSS MEDIA – “A dona história”, a dissertação, lembra que, ao se lançar no mercado, a Globo Filmes adotou três modalidades de participação em projetos para o cinema: (a) transformar minisséries em longas-metragens; (b) desenvolver veículos cinematográficos para as estrelas da emissora; (c) apostar em “filmes de qualidade”, com potencial comercial, apresentados por outros produtores, como a Diler & Associados, a Conspiração Filmes, a O2 Filmes e outras.

Mediante o retorno financeiro tímido do primeiro filme com recursos próprios da Globo Filmes – “Zoando na TV” (1999) – a empresa partiu a concentrar sua atuação no desenvolvimento de projetos e no serviço de cross media. No primeiro caso, nas palavras de Carlos Eduardo Rodrigues (diretor executivo da Globo Filmes), os roteiros que chegam a Globo Filmes passam por uma avaliação, os aprovados ganham uma avaliação artística de Daniel Filho para depois ir ao “conselho artístico” (formado por Rodrigues, Guel Arrais e Juarez Queiroz, o coordenador de cross media). Depois, o processo passa à “supervisão artística”, que significa uma intervenção direta na formação do projeto do filme, incluindo acompanhamento do roteiro, apoio à produção e escolha de elenco.

Pedro Butcher cita o caso de “Sexo, Amor e Traição” (2004), de produtora Total Entertainment e dirigido por Jorge Fernando, como um bom exemplo nesse tipo de interferência. A idéia original da produtora era fazer uma versão brasileira do grande sucesso mexicano “Sexo, Pudor e Lágrimas” (1999). Mas a produção brasileira teve todo o roteiro reescrito por profissionais da TV, mudando não só o tom dramático do original para o da comédia, como também escalando estrelas da emissora que, não por coincidências, estavam no ar, na telenovela “Celebridade”, quando o filme estreou nos cinemas em janeiro de 2004.

Esse exemplo já dá uma noção do conceito de cross media, quando, diz Butcher, se “permite uma cuidadosa manipulação do conteúdo de programas jornalísticos e ficcionais no sentido de se ‘produzir fatos’ que possam interessar à emissora”. Por esse expediente, a Globo Filme tem seu “diferencial mais importante”, explica o autor e cita o exemplo de “Cazuza: O Tempo não Pára” (2004), de Sandra Werneck.

O filme estreou com 300 mil espectadores no primeiro fim de semana, um sucesso, mas a classificação etária de 16 anos, estipulada pelo órgão responsável do Governo, inibia uma performance melhor nas bilheterias. Após uma reforma do ministério público nas regras de entrada de menores, permitindo a partir dali o acesso acompanhado pelos pais, surgiu uma longa reportagem no Jornal Nacional que terminava com o depoimento de jovens “comemorando que, enfim, eles poderiam assistir a ‘Cazuza'”. Depois disso, observa a dissertação, o filme teve uma queda de 5% de público, quando o normal seria de 25%.

Com “Dois Filhos de Francisco”, a TV Globo promoveu uma aparição da dupla cinebiografada, Zezé di Camargo e Luciano, durante uma sessão normal do filme num cinema paulista. Lá dentro, uma câmera, em infravermelho, captava a reação do público durante a projeção e, quando as luzes acenderam, os cantores entraram cantando no espaço. A “reportagem” sobre a sessão foi ao ar no programa “Fantástico”.

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