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Críticas

A Felicidade das Pequenas Coisas

Felicidade para inglês ver

Por Ivonete Pinto | 03.02.2022 (quinta-feira)

A camiseta que veste o personagem central de A felicidade das pequenas coisas (Lunana: A Yak in the Classroom, But., 2020)  informa nos primeiros minutos que o Butão é o país da felicidade. Só não diz que é também o país que cobra a mais alta taxa de permanência de estrangeiros, 250 dólares por dia (sic), valor que vai para o orçamento da felicidade. É mais caro ir para o Butão do que para a Coreia do Norte. Porém, a experiência de ver o filme custa bem menos e é necessária para entender a razão dele ser pré-indicado para a disputa do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Assim como o longa H6 (2021), da realizadora chinesa Ye Ye  que estudou na França e retorna ao seu país para filmar, o diretor do Butão, Pawo Choyning Dorji,  agora faz parte deste movimento que traz a diversidade para o Ocidente. Uma diversidade filtrada por diretores que sabem o que o Ocidente quer, o que o Ocidente é capaz de apreender de suas culturas. Se a China, que tem dinheiro aos montes, e o Butão, que tem felicidade para dar e vender, precisam desta forma de realização mediada, imagine-se os países que não contam com estas facilidades. Portanto, o espectador verá um filme pleno de explicações do contexto cultural.

Em A felicidade das pequenas coisas, o jovem Ugyen Dorji (Sherhab Dorji) não sabe bem o que quer da vida além de cantar na Austrália. Para ser “salvo” da hipótese de não servir para nada (medo da avó que o cria),  entra para o programa de governo para “buscar sua felicidade”. Ele então  é mandado como professor para a escola mais remota do Butão (“provavelmente a mais remota do mundo”, diz a instrutora em uma concessão ao grande público estrangeiro). A ideia é que ele contribua para a educação de crianças em uma longínqua aldeia e seja feliz.

O filme é todo moldado com a linguagem pop, super informativo em seus letreiros que adentram as imagens para não deixar o público navegando em águas turvas. Entretanto, cabe apenas  ampliar um pouco  este contexto quanto ao pequeno reino budista que tem menos de um milhão de habitantes e cujo monarca, desde 2006, é Jigme Khesar Namgyel Wangchuck. Foi o pai dele, o rei Jigme Singye Wangchuckm, que décadas antes tirou o Butão do isolamento e começou a investir marketeiramente a fim de tornar o país um destino turístico para quem se aventura pelas trilhas do Himalaia e para a abertura de negócios. Geograficamente, o Butão fica espremido entre a China e a Índia e sofre influência (e proteção) de ambos.

A atual majestade é jovem, estudou na Universidade de Oxford e o filme serve para turbinar o Índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), que vem sendo exportado como modelo. O índice mede o bem-estar da população, considerando principalmente o acesso à educação e à saúde, mas também leva em conta  a autoestima e o stress. Por isto, um filme sobre um professor altruísta ensinando numa distante aldeia, cabe como uma luva para a publicidade do país.

No filme, impressiona a cultura dos jovens encharcada de influência estrangeira, na música cantada em inglês, nas expressões inglesas que recheiam as frases em butanês (ou dzonga). Não é uma invenção. Diferente de outro país dos arredores, o Tibet ocupado pela China, no Butão  até os documentos oficiais são em dzongka e inglês. Mas no filme a insistência é tão grande em mostrar que até as crianças falam inglês, que soa como um convite para que os turistas venham sem medo gastar a taxa mínima de 250 dólares por dia.

Vamos admitir, trata-se de uma peça de propaganda do Butão. Belas paisagens, com rios correndo entre as montanhas, abundam as sequências. Às vezes um diálogo é interrompido para que os personagens caminhem para outro lugar e assim temos mais um cenário pictórico de encher os olhos.

Gasa, há 2.800 metros do nível no mar, é a cidade onde fica a aldeia da escola mais remota do mundo para aonde o protagonista é mandado. Lunana, a aldeia, fica a 4.800 metros de altitude (população de 56 habitantes, nos informam os letreiros) e somos atualizados de tudo todo o tempo, como num documentário da National Geographic. O bom disto é que os atores  são locais, corroborando o aspecto documental da obra ao mesmo tempo que alimentam a verossimilhança. As crianças que interpretam os estudantes da escola do filme nunca saíram da remota Lunana, nunca viram um automóvel, nem pasta de dente.

“A aldeia mais remota do mundo”

Logo no início do filme somos apresentados a um homem descalço, e em seguida é contraposta a imagem de uma menina usando botas vermelhas, com a clara mensagem de que andar sem sapatos nas montanhas frias e rochosas é uma opção, mas para as crianças há calçados. Mais ou menos como o governo do Butão dizendo que a felicidade envolve a liberdade de manter uma tradição, porém que as crianças não precisam sofrer. Para trazer um dado menos fantasioso, há um alcóolatra na aldeia. Jogado ao chão, este único elemento destoante do bem-estar da sociedade fica solto na trama rasa. Não há consequência deste elemento no que poderia ser um painel mais profundo daquela sociedade. O único conflito [spolier] é a ida do protagonista para viver na Austrália (atenção,  este não é o final do filme, há uma resolução). O dado “Austrália” está ali para que o líder da aldeia de forma didática possa questionar o jovem. Esta parece ser a grande “denúncia” (ou preocupação), que o diretor tem ao trazer este desejo do personagem para o filme.

Do diretor  butanês Pawo Choyning Dorji não há muito o que falar, a não ser que é um fotógrafo renomado, o que explica em parte os enquadramentos que chamam a atenção para a estética elaborada. A felicidade das pequenas coisas é sua direção de estreia no cinema, sendo que o IMDB anuncia para este ano o lançamento de Once upon a time in Bhutan… Já dá para imaginar  seu futuro promissor como garoto-propaganda do regime. Estar na pré-lista de indicação ao Oscar é seu passaporte. Bastante para um país que apenas na década de 1990 viu seu cinema se desenvolver e cuja capital, Timbu, tem apenas uma dúzia de salas, exibindo em geral títulos indianos e chineses.

Assim, é natural que o bem acabado filme tenha recursos de fora. Foi produzido e distribuído pela grande Huanxi Media Group, de Hong Kong, a qual se associa a maior parte da equipe técnica. Aliás, Zhang Yimou é um dos diretores da Huanxi, e dele, a propósito,  temos saudade do O caminho para casa (1999),  também sobre um professor numa aldeia distante, mas sem o caráter propagandístico e didático da produção butanesa.

A felicidade das pequenas coisas  se resume a mostrar a adaptação do jovem urbano ao ambiente das montanhas, a como rapidamente se acostuma a usar o estrume do Norbu, o iaque,  para acender o fogo, e a como conviver com o bovino dentro da escola (segundo o diretor, a situação tem origem em fato real, acontecido com um professor de aldeia). O celular não tem mais função para ele, que se arrebata em ensinar as crianças e passa o tempo a aprender canções tradicionais, que via de regra cantam a felicidade. Muito lindo.

Se nos contentarmos em ficar apenas com o que o enredo pode ter de metafórico, o filme pode ter seus encantos. A relação das pessoas com a natureza, o papel dos animais para a sobrevivência dos humanos, etc., sempre é positiva. E o título original, que fala do iaque na sala de aula, nem pegou carona no apelo da felicidade. Por sinal, o título e a própria imagem de um iaque morando em uma sala de aula, é por si só ilustrativo da conjugação da natureza com a educação, da tradição com o progresso que, no final das contas, remete ao tal índice da felicidade. Curioso que ao pesquisar sobre o rei do Butão, vemos que seu pai Jigme Singye Wangchuck, que ainda vive,  é casado com quatro mulheres. Elas são irmãs e todas ostentam o título de rainha. A felicidade do rei que inventou o índice, ao menos, não se discute…

Certamente, a estratégia de marketing governamental mais curiosa do mundo, vender a felicidade, gera interesse. E se não podemos conhecer in loco este paraíso, que seu cinema  ─ mediado, filtrado, edulcorado ─  chegue a mais gente possível. Vai ser bom para os butaneses.

De qualquer forma, mesmo que de modo idealista, enaltecer a figura do professor para valorizar a educação e a cultura é importante. Pena que o ministro da educação, ou qualquer membro deste governo brasileiro jamais verão este filme.

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