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Festivais

50º Gramado (2022) – “9” e “Clube dos Anjos”

Um filme de futebol anti-futebol e um filme impecavelmente questionável

Por Luiz Joaquim | 14.08.2022 (domingo)

na foto de Edison Vara/Agência Pressphoto, os realizadores Martin Barrenechea (e), Nicolás Branca (d) e o ator Enzo Vogrincic do filme uruguaio “9”

GRAMADO (RS) – Vamos começar pelo Uruguai, país que deu a obra mais interessante da segunda noite, ontem (13), na mostra competitiva do 50º Festival de Cinema de Gramado.

Dirigido por Nicolás Branca e Martin Barrenechea, o filme 9 chegou discreto, mas firme em sua maneira, nada simples no cinema, de combinar uma comunicação fácil para qualquer espectador sem deixar de lado pretensões mais autorais no campo cinematográfico e colocando em destaque, ainda, questões de abuso que são próprios do universo masculino, entre pai e filho.

Pôster do filme

O 9 do título faz referência ao número da camisa do protagonista, o jovem Christian (o muito bom Enzo Vogrincic). Ele é uma espécie de Neymar, jogador de futebol da seleção uruguaia em ascensão cujo passe para um time britânico está sob ameaça por conta de um ato violento (nunca explicitado por imagens no filme) que foi praticado por Christian num jogo importante. O tal ato o coloca numa situação delicada entre seus próprios conterrâneos, mas é ruim principalmente para os seus negócios.

A explosão violenta de Christian no campo é na verdade a ponta de um iceberg de tensão interna represada pelo jogador. Como bem disse o crítico Luiz Carlos Merten durante a entrevista coletiva de hoje (14) pela manhã, 9 tem diversas camadas de leituras (outro mérito desse belo trabalho).

A mais evidente delas é a opressão sofrida por jogadores que têm seu pai gerenciando sua carreira e a natural confusão de autoridade que isso pode ingerir sobre a vida pessoal de um atleta muito jovem. A dupla de cineasta lembrou alguns exemplos, apontando que tal prática já provou não ser exatamente uma boa ideia por diversas razões. Neymar, Messi, Cavani e Suárez foram alguns nomes mencionados.

A propósito, o caso de Suárez na Copa do Mundo de 2014, no Brasil, quando o jogador uruguaio mordeu um jogador italiano, foi o que inspirou os realizadores para o leitmotiv de 9.

Mas, ainda que o ambiente do desenvolvimento dramático aqui parta do universo futebolístico, 9 quer mesmo é mergulhar no drama interno de Christian. Também na entrevista coletiva de hoje, a crítica Neusa Barbosa chamou a atenção de como o protagonista é apresentado como um objeto inerte diante das discussões em que seu pai resolve o seu futuro.

Não à toa, revelou um dos diretores, essa é uma das razões pelas quais num desses planos, com os personagens relaxando à beira da piscina, a cabeça de Christian é cortada do quadro. “Não foi um erro de enquadramento ou projeção, aquilo é proposital”, contou Martín.

Há um volume grande de acertos em todos os aspectos criativos de 9. O mais gritante está no elenco, com grande destaque para Enzo, dando a complexidade que seu Christian precisava em toda a sua confusão de identidade e fragilidade para tentar tomar as rédeas de sua própria vida.

A locação do filme, e principalmente a isolada residência do jogador – outra pontuação certeira de Merten comentada no debate –, é um personagem em si. No início do filme, vemos Christian e seu pai chegando nessa nova casa adquirida, milionária e deslumbrante na arquitetura, mas ainda não mobiliada. É, de cara, uma representação do vazio e da impessoalidade que domina a vida do jogador.

A ausência da mãe, falecida na infância de Christian, é outra ausência que reforça o ambiente masculino tóxico no qual cresceu o protagonista. Em 9, os diversos aparelhos de tevê da casa de vidro estão sempre sintonizadas em algum jogo de futebol. Nada contra isso, mas, aqui, reforça uma ideia de prisão cultural.

É uma mulher que vem bagunçar, no melhor sentido, esse destino vazio que está reservado para a futura vida do inseguro Enzo. Belén (Sofia Lara) é sua vizinha e o fato de ela não o enxergar como um gênio do futebol, mas apenas alguém que “chuta algumas bolinhas” não poderia ser mais atraente para o rapaz que, talvez, pense isso dele próprio.

Ela funciona como uma porta que dá acesso a esse jovem, habitando num cárcere de luxo, a experimentar a vida que a sua idade pede, ou seja, gozar da liberdade de experimentar.

Dito isso, vale imaginar o quão interessante seria acompanhar uma sessão do 9 com um Neymar ou Suaréz da vida.

BRASIL – Enquanto isso, tivemos abrindo, a noite a primeira adaptação para o cinema de um romance de Luís Fernando Veríssimo – Gula: O Clube dos anjos (1998). É também a estreia assumindo a direção de um longa-metragem por Ângelo Defanti, que adaptou o roteiro interlocutando diretamente com Veríssimo.

Produtora Sara Silveira apresenta “O Clube dos Anjos” com equipe ao fundo. | Foto: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

O filme – que será distribuído em breve pela Vitrine Filmes e tem também o carimbo da Warner Bros. –, pode funcionar como um belo exemplo de uma produção em que tudo é impecavelmente correto no aspecto técnico e criativo mas, ainda assim, segue como um avião de última geração que é pilotado entre acertos e desequilíbrios. Um máquina pesada que até decola bem mas depois passa por turbulências que, ao final, faz seu passageiro não querer viajar ali novamente.

O clube dos anjos (2020) é, nesse sentido, também um bom objeto de estudo a ser dissecado pela crítica para demonstrar porque tal fenômeno acontece. Se não, vejamos…

O elenco estelar – mas não apenas estelar, experimentadamente talentoso também – é integrado por Otavio Muller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, André Abujamra, Ângelo Antônio, César Mello, Samuel de Assis e o português António Capello (o filme é uma coprodução Brasil [Dezenove Filmes] e Portugal).

Todos, sem exceção, dão a Defanti atuações brilhantes, com destaque para Muller no protagonismo – podendo esta performance figurar como um de seus melhores momentos no cinema. Em pé de igualdade, está o brilho de Matheus Nachtergaele como o misterioso cozinheiro Lucídio, que se infiltra no fechado clube liderado por Daniel (Muller).

O clube é formado por mais sete amigos de Daniel que se reúnem mensalmente, desde a juventude, para jantar e tentar saciar o prazer gastronômico. A fome e o prazer são a guia aqui, sejam eles um guia dramático não apenas para a comida mas também para a vida em si. E a ausência dessa fome e desse prazer específico, pela vida, é a morte. Há, inclusive, abrindo o filme, o provocador provérbio dizendo que “o desejo deseja a própria morte”.

No tal clube, a chegada de Lucídio coincide com a morte de um dos integrantes no dia seguinte após o primeiro jantar preparado pelo cozinheiro. O caso se repete nos jantares seguintes e assim segue a brincadeira estabelecida entre o enredo e os espectadores para que estes percebam Lucídio, ele próprio, como a morte, ou um anjo da morte, punindo o pecado da gula por aquilo que a gula mais se fortalece, o desejo pelo excesso.

Acontece que Clube dos anjos, o filme, parece mais interessado em outros dispositivos do entretenimento do que os da reflexão, no caso cinematográficos. Talvez um tanto de sutileza, e menos texto declamados com “booooms” que insistentemente maltratam o subwoof da sala de cinema, fosse bem vindo para torná-lo mais eficaz em sua busca por uma propensão reflexiva.

Algo que vemos com clareza em, para ficarmos no mesmo terreno, A comilança (1973), de Marco Ferreri.

Joana Claude à direita no microfone e Renan Barbosa Brandão, ao seu lado, apresentam seu curta “O último domingo”  | Foto: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

CURTAS – Cada longa foi antecedido por curtas-metragens no mínimo curiosos, na noite de ontem. Seguindo o espírito originado na literatura de Clube dos anjos, este foi antecedido por O último domingo, que vem do Rio de Janeiro, mas é codirigido pelo fluminense Renan Barbosa Brandão com a pernambucana Joana Claude. O filme é uma livre adaptação de um trecho de O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago.

Benzedeira, de Pedro Olaia e San Marcelo, veio do Pará e antecedeu a sessão de 9. O documentário imerge no mundo da benzedeira conhecida com Maria do Bairro, nos arredores da cidade de Bragança, e na sua relação mística em seu isolamento com a natureza.  

Ambos trabalhos merecem uma avaliação cuidadosas pela audácia (e resultados) de sua produção. Mas pode-se dizer que O último domingo é surpreendente pela perspectiva de humildade necessária, que nos apresenta, para enredos assim, e Benzedeira  por nos levar a um mundo quase primitivo mas avançado espiritualmente, sem julgá-lo. Este último terá exibição em breve no Recife.

– viagem a convite do Festival

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