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Críticas

O Lodo

O transbordamento de tudo aquilo que foi recalcado para dentro de um lamaçal psíquico.

Por Yuri Lins | 15.04.2023 (sábado)

Em um determinado momento de O lodo (BRA, 2020), Manfredo (Eduardo Moreira), um funcionário deprimido de uma seguradora, busca ajuda em uma consulta psiquiátrica com o renomado médico Dr. Pink (Renato Parara). Enquanto Manfredo espera apenas por um remédio para recuperar sua energia e retomar sua rotina, Dr. Pink deseja ir mais fundo na terapia e encontrar a raiz dos problemas do paciente. Apesar da resistência de Manfredo, Dr. Pink explica de forma didática que todos possuem um lamaçal interno, um lodo que esconde e dissimula nossos traumas e desejos, mas que também é onde reside a possibilidade de cura. Essa imagem do lodo fermentado torna-se a metáfora central do diretor Helvécio Ratton, que conduz o espectador por um tour de force surrealista sobre o adoecimento psíquico.

Manfredo (Moreira) busca ajuda com o Dr. Pink (Parara)

O lodo é um filme criado sob o signo do absurdo às tintas de Dostoiévski e Kafka. Tal como nas obras desses autores, as personagens do filme são subjugadas pela burocracia e pela rotina, resultando em um quase total esquecimento de si mesmas e em um sentimento de mal-estar que transborda a nível do fantástico. Podemos perceber esse transbordamento com a aparição do duplo do Sr. Goliadkin em O duplo e com a metamorfose de Gregor Samsa em um inseto gigantesco em A metamorfose. Em O lodo, a sensação de mal-estar do protagonista é representada de forma literal quando um lamaçal passa a ser expelido pelo seu peito, como substratos de tudo aquilo que ele recalcou nas camadas petrolíferas de sua mente.

O mundo de Manfredo é composto por uma simetria nos enquadramentos, além de uma harmonia entre as cores e os objetos presentes em cena. Cada elemento da composição do filme possui um equilíbrio interno, onde a naturalidade e o estranhamento coexistem organicamente. Essa ordem aparente reflete a sedimentação de uma rotina funcional adquirida pela prática, onde o filme transita habilmente entre uma representação artificiosa da neurastenia burocrática e um realismo reconhecível. Entretanto, no centro deste universo de centralismos, existe um homem que não tem consciência de sua própria solidão. Manfredo é como um corpo que, de tão parte constituinte do habitat, entra em descompasso com ele  através de uma  implosão em si mesmo.

Uma mulher, uma criança (criança?) e um médico cercam o Manfredo doente de si próprio.

Nesse ponto, O lodo mostra sua maior força: a ordenação do mundo de Manfredo é progressivamente corroída por um aumento do absurdo, fazendo com que todo o espaço externo seja transfigurado por sua mente alquebrada. Um caleidoscópio de situações e personagens surgem, tornando-se cada vez mais difícil distinguir o que é real do que é delírio. Manfredo decide não dar continuidade ao tratamento, mas passa a ser perseguido pelo Dr. Pink, que chega ao absurdo de processá-lo para que continue o tratamento. Em algumas ocasiões, o psiquiatra surge utilizando bisturi para cortar o corpo vulnerável de Manfredo e remover o lodo que é expelido. No trabalho, Manfredo passa a não dar conta das demandas, e sua fragilidade é aproveitada por um colega que quer uma promoção. Surge uma mulher de seu passado trazendo consigo seu filho, que Manfredo renega. A figura do rapaz é estranha e inquieta, por vezes pondo em xeque se é realmente real.  Manfredo fica cada vez mais doente e é através da ótica da incapacidade imposta pela sua doença que o filme se permite explorar a dúvida, o mistério e o irracional.

Todavia, Ratton não consegue manter as qualidades de seu filme até as últimas consequências e o roteiro se esforça em oferecer algum entendimento que ordene o caos apresentado. A ambivalência de sentidos que as situações que ele colocou em entropia à órbita de Manfredo são enfraquecidas por um arremate ideológico.  No final, Manfredo retorna ao divã após reconciliar-se com a ideia de se tratar. A ideia de que todas as experiências absurdas que Manfredo vivenciou foram resultado de sua resistência em assumir a responsabilidade por si mesmo já estava presente durante toda a narrativa, porém, é afirmada de forma categórica no final.

Renato Parara é o médico que se apresenta dentro de um universo kafkaniano.

Essa redução acaba por esclarecer todo o processo visto até então, mas ao mesmo tempo, reduz as arestas abertas a um cientificismo. Todo o caleidoscópio, todo o lamaçal sinuoso da dúvida construída pelo filme, é reduzido à necessidade da cura através da fala – retornando à filiação de O lodo, este é um pecado que nem Kafka nem Dostoiévski cometem: jamais afirmam literalmente o que é a metamorfose de Gregor Samsa ou a natureza do duplo de Goliadkin. A multiplicidade de possibilidades de interpretação é parte constituinte de suas afirmações discursivas e críticas.

Em resumo, O lodo é uma obra singular no atual cinema brasileiro, sendo o melhor filme de Helvécio Ratton em décadas. Apesar das insuficiências apresentadas no final, sua trajetória é notável e marcada por uma construção cuidadosa e instigante. Nessa altura de sua carreira, Ratton demonstra maturidade e uma habilidade ímpar no manejo da forma cinematográfica. No entanto, talvez para atender plenamente às demandas de O lodo, seria necessário abraçar a loucura com maior intransigência.

 

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