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Dossiê Walter Hugo Khouri – 95 Anos (Texto #1)

Três alunos de crítica de cinema apresentam suas análises sobre “Noite Vazia” (1964)

Por Donny Correia | 21.10.2024 (segunda-feira)

” — Em 21 de outubro de 2024, o cineasta paulista Walter Hugo Khouri completaria 95 anos. Dono de uma poética composta por 26 filmes, Khouri foi por muito tempo lançado ao antagonismo do Cinema Novo na historiografia nacional. Hoje, longe das celeumas estéticas e ideológicas, o cineasta é lembrado por sua exploração cirúrgica da condição humana e da crítica a uma burguesia hedonista e depressiva.

Para homenagear o legado de um dos mestres da cinematografia brasileira, em outubro de 2024, como parte do plano de ensino da disciplina de Editoria de Cultura que ministro no Centro Universitário Belas Artes, pedi aos alunos do quarto semestre de Jornalismo que escrevessem uma breve resenha crítica sobre o filme Noite Vazia (1964), como avaliação bimestral. Para muitos, foi o primeiro contato com o universo khouriano.

Eis aqui, três trabalhos que mereceram destaque.” (Donny Correia)


NOITE VAZIA: um filme atemporal 

Maria Clara Pinheiro

Um dia desses um colega me contou sobre uma festa universitária em que foi e “pegou” oito meninas. Na primeira vez em que esta história chegou ao nosso grupo de amigos, se tornou motivo de piada. Mas, neste dia em específico, ao recontar o evento, o menino me confessou que, no fim da experiência, somente se sentia vazio. 

Em 1964, mais de meio século antes, os personagens de Noite Vazia, Luizinho (Mário Benvenutti) e Nelson (Gabriele Tinti), sentiam o mesmíssimo vazio. Os dois integrantes da burguesia da Grande São Paulo, criados pelo cineasta Walter Hugo Khouri, nos mostram como é viver com muito na cidade grande. Para eles, que não possuem as preocupações da classe baixa, viver é passar as noites em busca de novas relações, a fim de impedir o tédio do dia a dia. Em uma dessas noites, Luizinho e Nelson encontram as prostitutas Mara (Norma Bengell) e Cristina (Odete Lara). No entanto, apesar das tentativas de diversão, a experiência acaba deixando tanto os amigos, quanto as mulheres ainda mais frustrados e vazios.

Para representar essa classe, além de seus anseios, Khouri apostou em cenas do trânsito da metrópole. Estas trazem ruídos que se tornam inexistentes a partir do momento em que os personagens adentram quartos ou bares. Assim, fazendo uma contraposição entre o agito da vida nas ruas e o tédio inquietante das relações entre quatro paredes, que é demonstrado através de longos momentos de silêncio e reflexões dos personagens. 

Apesar de ser responsável por consolidar Khouri como um autor focado na filosofia e psicologia, a produção da Companhia Cinematográfica Vera Cruz recebeu diversas críticas por não seguir os padrões do Cinema Novo, que buscava abordar as desigualdades de classe. Na minha opinião, no entanto, o filme traz este viés, mas com base em outra perspectiva. 

“Noite Vazia”: a inquietante realidade

Enquanto as outras produções do período ditatorial prezavam por representar a classe trabalhadora e fazer com que estas se vissem em seus personagens, Khouri manteve a discussão da desigualdade, mas focando em impactar a classe média alta com críticas ao seu estilo de vida supérfluo – enfatizando como o dinheiro os torna seres ocos, sempre em busca de distração ou felicidade.

Um diálogo de Noite Vazia que exemplifica este argumento é o que ocorre entre as prostitutas e Luizinho, após o homem passar horas reclamando do tédio. 

“Será que você não gosta de nada, é?”, diz Cristina. “Acho que não e, quando gosto, é por pouco tempo”, responde o homem. 

“Se você desse um duro, não se chateava tanto”, comenta Mara.

Além de demonstrar uma crítica à burguesia, este trecho mostra como o filme de Walter Hugo Khouri é atemporal e discute temas levantados tanto por filósofos gregos – como Epicuro, que defendia a ideia de que o prazer duradouro e significativo advém de uma vida simples -, quanto por contemporâneos, como Zygmunt Bauman. O sociólogo e filósofo polonês explica – através do conceito de modernidade líquida – que, na sociedade contemporânea, as pessoas estão cada vez mais imersas em relações e consumos que são rápidos e descartáveis, resultando em um profundo senso de insatisfação e vazio.

O desgosto da crítica especializada e o fato de a censura da época ter adiado o filme por meses, no entanto, não impediu o sucesso entre o grande público. O cineasta conseguiu, até mesmo, levar Noites Vazias ao Festival de Cannes, em 1965. 

No fim, ao abordar a inquietante realidade, Noite Vazia se solidifica como uma reflexão profunda sobre a condição humana, tornando-se um clássico que continua relevante, desafiando gerações a olharem para dentro e reconsiderar o que realmente traz significado às suas vidas.

FONTES:

 https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67283/noite-vazia

https://analiseindiscreta.wordpress.com/2015/06/06/noite-vazia-walter-hugo-khouri-1964/


 

O Vazio da Modernidade: Luxúria, Alienação e Reflexos Femininos em “Noite Vazia” 

Sofia de Oliveira Alves

Walter Hugo Khouri, um dos principais nomes do cinema existencialista no Brasil, apresentou ao público o filme Noite Vazia em 1964. O trabalho é notável pela sua profundidade filosófica e psicológica, afastando-se dos temas socialmente engajados do Cinema Novo e aprofundando-se numa pesquisa sobre a burguesia urbana de São Paulo. Nesta análise, investigaremos como Noite Vazia retrata a luxúria da vida contemporânea e espelha, por meio dos personagens, uma procura sem sucesso por significado, ancorada no vazio existencial. 

O longa-metragem destaca quatro personagens principais: Luiz e Nelson, dois homens descontentes com suas existências, e Cristina e Mara, prostitutas de alto padrão que têm uma noite com os dois. O apartamento onde a trama ocorre é um local de reclusão, onde Khouri elabora uma reflexão intrincada sobre alienação, tédio e luxúria. Este ambiente fechado e pouco sofisticado contrasta com a modernidade de São Paulo. Khouri, influenciado pela filosofia de Arthur Schopenhauer, investiga a noção de que uma existência oscila entre a dor e o tédio. Segundo Schopenhauer, a felicidade é apenas um breve intervalo neste ciclo, e a procura constante por prazer representa um esforço para fugir da dura realidade da vida. 

No enredo de Noite Vazia, os personagens masculinos se encontram imersos nesse ciclo de procura por prazer e contentamento, utilizando o sexo e a companhia de prostitutas como um refúgio momentâneo. No entanto, ao longo da narrativa, torna-se evidente que a interação com Cristina e Mara apenas intensifica o vazio que os consome. Como o neuropsiquiatra Viktor Frankl aponta, “quando uma pessoa não consegue encontrar um sentido profundo de significado, ela se distrai com prazer”. O filme, portanto, evidencia essa distração como uma resposta ao tédio existencial. 

“Noite Vazia”: uma profunda reflexão sobre a condição humana

O título do filme, Noite Vazia, já indica o clima de desespero silencioso que se estende por todo o filme. A noite simboliza não apenas a transitoriedade do tempo, mas também a falta de sentido para os personagens. As conexões que estabelecem não são autênticas, mas acordos comerciais que evocam a superficialidade da sociedade contemporânea. Um aspecto marcante do filme é a forma como Khouri utiliza a cidade de São Paulo como um “quinto personagem”. A cidade, vibrante e cosmopolita, representa o progresso material, mas também o limbo que esse progresso pode gerar, cenário perfeito para essa meditação sobre o tédio moderno, em que o crescimento econômico não é capaz de preencher o abismo psicológico dos indivíduos. 

Contudo, a dura crítica que Khouri sofreu dos cineastas do Cinema Novo, que o rotulavam como alienado, expõe um intrigante debate estético e filosófico. Ao contrário de seus colegas que defendiam um cinema engajado e politizado, Khouri preferiu tratar a questão humana de maneira mais introspectiva, destacando o efeito psicológico da modernidade. 

No final das contas, Noite Vazia é uma obra cinematográfica que vai além das questões locais e temporais, proporcionando uma reflexão universal sobre a condição humana. A procura por prazer e alegria, expressa nas interações dos personagens, é meramente um disfarce para o verdadeiro vazio que eles experimentam. Ao se afastar das críticas sociais diretas, Khouri sugere uma crítica mais sutil, porém igualmente impactante. Em uma sociedade que prioriza o acúmulo material acima de qualquer coisa, Noite Vazia provoca o público a enfrentar o custo emocional e existencial do progresso.


Vazio e permanência 

Thomaz Eduardo Farias da Silva

Em meio à ascensão industrial paulistana que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, a produção cultural e, mais especificamente, cinematográfica local passou a galgar seus espaços dentro do novo panorama instaurado no Brasil. É quando surgem as obras de Walter Hugo Khouri, nascido na capital paulista em 1929, mas com boa parte da formação de seu repertório vinda do avô, que residia no Rio de Janeiro, tido como alguém ligado às ciências e à cultura de modo geral. 

A partir disso nasce a paixão de Khouri por cinema, que, após experiências iniciais, realizou – ou, como afirmou algumas vezes, “se fez através dele” – o que seria seu maior sucesso: Noite Vazia, em 1964. 

O longa é centrado em quatro figuras: os amigos Nelson (Gabriele Tinti) e Luizinho (Mário Benvenutti), e as prostitutas Mara (Norma Bengell) e Cristina (Odete Lara). Todos parecem ter por objetivo – como sugere o título – preencher algum tipo de vazio. No caso dos dois homens, pelo desejo hedonista ou por descontentamento com a vida à maneira que é, e, para as mulheres, pela “necessidade” de uma busca – Mara indica querer meios para manter-se feliz o maior período possível e Cristina almeja garantir seu futuro através da renda de sua profissão que acaba por ser efêmera. 

Sessenta anos depois de seu lançamento, o filme mantém os aspectos que o levaram a ser tachado de “alienado” e “não engajado” pelos cinemanovistas (bem como foi a obra do diretor ao longo de sua carreira). O foco na angústia causada pelos anseios não realizados de uma elite era diametralmente oposta à realidade retratada nos trabalhos do Cinema Novo, cujo destaque estava em indivíduos marginalizados socialmente em contextos brasileiros distintos, como o sertão nordestino ou as favelas cariocas. 

Além da crítica social, “Noite Vazia” aborda questionamentos existenciais e universais sobre o estar no mundo.

Esteticamente, o filme se utiliza de elementos como a trilha sonora e a fotografia para trazer um ar de tensão constante e, juntamente com closes recheados de silêncios, é posta em cena uma das características específicas de Khouri: intimismo e proximidade, a psicologia dos personagens principais se torna um objeto de observação. Luizinho evidencia um desvio moral por conta do poder, do prestígio e da riqueza, uma vez que é pai e casado, mas ainda assim, procura o melancólico Nelson (subliminarmente invejado pelo amigo) para alcançar aventuras sexuais, em busca de algo “diferente”. Esta noite, poderá ser a tal “diferente”, contudo, o que dá o tom de filme é justamente o fato de nunca ser. 

A trilha sonora atonal cria uma atmosfera de tensão e de angústia constante, com olhares distantes, como se nada ali trouxesse um prazer genuíno ou relações verdadeiras. Constrói-se um cenário em que o espectador se vê à espera de algo mais grandioso (seja bom ou mau) acontecer, entretanto, o ciclo dos amigos só torna a se repetir. 

A reflexão proposta pelo filme ainda se traduz na contemporaneidade: a ânsia capitalista de possuir enseja alterações na índole daqueles com mais posses, por diversas vezes, bem como aqueles mais pobres que buscam prazeres ou realizações tanto pela necessidade de sobrevivência quanto pelo desejo de fugir da aflição que a vida cosmopolita proporciona. 

A São Paulo crua e fria retratada é opressiva, e o fenômeno da melancolia finda por atingir a todos dentro de sua realidade: a cidade, seus estabelecimentos e suas pessoas, enquanto representação de um “vazio”, parecem alcançar um tamanho imensurável. Em um panorama geral, o longa, assim como a contribuição de Khouri para o cinema brasileiro, possui seu lugar cativo, embora pouco lembrado na memória coletiva. O contraponto à perspectiva do Cinema Novo põe em evidência a capacidade dos trabalhos nacionais de trazerem questionamentos intermitentes e que sejam capazes de atravessar o tempo.


Khouri e Chabrol

Rafael do Lago

“Walter Hugo Khouri é o Antonioni brasileiro”. Para tais fins ficaria mais satisfatório: “Walter Hugo Khouri é o Claude Chabrol brasileiro”. Ou ainda mais: Khouri é o Khouri brasileiro, em seus defeitos e virtudes.

Ouve-se muito de que se trata do dono de uma filmografia determinada a, mesmo quando em meio a suas diversas bifurcações, desbravar as contradições, introspecções e paixões da burguesia decadente. Correto, mesmo que ainda incompleto.

É possível encontrar a mesma generalização em relação aos filmes de Antonioni e Chabrol. Mas existem várias burguesias, em trajes e hábitos distintos, o que ambos compreenderam facilmente. Então era preciso ir um passo além da mera documentação naturalista. Pode-se arriscar dizer que os filmes desse trio não podem ser restringidos a serem “sobre” a vacuidade burguesa, mas antes sobre as imagens que surgem de e para além dela.

Antonioni é mais enigmático, e em certo nível mais experimental, do que Chabrol e Khouri juntos, assim como sendo menos ambicioso em ser um sociólogo do que os dois últimos. Em Chabrol e Khouri, as lutas de classes, contradições e hipocrisias estão na própria forma do filme, em que um corte pode se tornar mote de uma grande subversão.

Se o sucesso é sempre alcançado ou não é outra coisa, mas inegavelmente há o interesse. Khouri, desde seu primeiro filme, de 1953, O Gigante de Pedra, dificilmente se afastaria desses temas. O conflito social surge inevitavelmente, podendo ser apresentado de modos diferentes e dando margem às relações mais antagônicas. Talvez Chabrol tenha alcançado o auge quanto à estrutura fílmica como a própria revolução em La Cérémonie, de 1995.

É possível estabelecer uma aproximação entre ‘O Palácio dos Anjos’, de Khouri, e ‘La Cérémonie’, de Chabrol? A resposta é sim.

A divisa entre oprimido e opressor é atenuada dialeticamente. A câmera acompanha impassiva tanto as ações da família tradicional burguesa quanto as das duas trabalhadoras criminosas, não se cria nenhum juízo de valor em relação a qualquer um. Algo semelhante ocorre em O Palácio dos Anjos de 1970, de Khouri. Nele, um grupo de deslumbrantes mulheres, insatisfeitas com seus trabalhos medíocres, fomentam a ideia de se tornarem prostitutas de luxo. O humor ácido de Khouri se encontra presente aqui, principalmente em duas ocasiões. Em um determinado momento, quando a protagonista busca se desvencilhar de seu patrão assediador, ela ameaça cortar um quadro pendurado em sua parede. A ação, pela reação do patrão, aparenta se igualar a estar sob a mira de uma arma. Em outro ponto, o grupo de amigas discute sobre a possibilidade de tornar o apartamento um “cabaré de luxo”, maravilhadas com quão fácil, supostamente, é ganhar dinheiro com isso. Elas fazem as contas e em teoria estariam ricas em pouco tempo.

A realidade se mostra mil vezes mais difícil. O bordel, para além de um trabalho, se torna um verdadeiro negócio. Se torna necessário reformar as paredes e móveis, tornar o espaço mais acolhedor para a alta clientela. A igualdade entre elas se mostra ilusória frente ao claro favoritismo dos homens. Antes de se darem conta, as mulheres se aprisionam naquilo que elas mesmas criaram, um comércio. Se torna, acima de tudo, um investimento, e com a ironia sádica de ser um investimento bem fastidioso de ser contornado.

As ações cotidianas, mecânicas, desse espaço englobam em sua visualização o discurso em si; assim como a tragédia final em La Cérémonie é montada a partir dos pequenos eventos distantes, mesmo que catastróficos, da rotina das duas empregadas, os vários tracking-shots ou close ups de O Palácio que nos ajudam a acompanhar esses personagens continuam de certa forma impessoais. Somos poupados a de fato chegarmos a conhecê-los. Khouri não pede para que choremos junto destas mulheres.

Estes dois diretores, para além de qualquer traço de sentimentalismo, através de uma limpidez nos planos e movimentos, se contentaram a filmar até onde cada passo dessas pessoas poderiam levá-las dentro da sociedade, e observa-las com curiosidade, por vezes infantil. Sempre com respeito, sem buscar esgotar um significado de suas vidas, sem explicar em demasia.

 


Para ler um panorama sobre a carreira de Walter Hugo Khouri, clique no link do artigo escrito pelo crítico e pesquisador, Donny Correia, publicado aqui mesmo no Cinema Escrito, em 2023:

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