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Vladivostok

Filme russo banal e deslocado

Por Ivonete Pinto | 27.05.2023 (sábado)

Vladivostok (2021) é o elogio ao filme médio.  Um cinema sem pretensões, que quer apenas distrair, com uma pitada aqui e ali de uma verve cinefílica,  que se não for entendida nem fará diferença. No 32º Festival de Kinotavr, em Sochi,  a produção do Mosfilm obteve a nota mais baixa da crítica entre as 15 produções da competição oficial do evento. Foi desqualificado pelo seu roteiro cheio de platitudes e estúpidas observações sobre um crime (palavras da crítica russa). Aliás, o roteiro e a produção são assinados pelo diretor geral do Mosfilm, Karen Shakhnazarov. O próprio diz em entrevistas  que os filmes da era soviética são muito diferentes dos produzidos hoje na Rússia. Elementar. Mas conflitos não faltariam para dar vazão à força das imagens, elemento que falta em Vladivostok.

É possível concluir que o CP-Umes o tenha programado  apenas  para assinalar que a Rússia tem uma produção diversificada,  que procura refletir sobre o seu tempo. Seu enredo tem como pano de fundo a pandemia da Covid19. Já no pano de fundo da recepção, não há como evitar, temos a guerra da Rússia contra a Ucrânia. O que é indicado evitar a todo custo  é a essencialização do tipo “russos são assim”, “ucranianos são assado”. Até porque, ucranianos não são personagens do filme, ainda que nossa mente insista em julgar os personagens russos mais pelo que estão fazendo no front do que dentro de uma história ficcional como esta.

No entanto, as afinidades eletivas já nascem do próprio Mosfilm, estúdio  inaugurado em Moscou em 1920, gigantesco, com seus 170 tanques de guerra entre os adereços, e que rodou filmes ucranianos, armênios e georgianos. As 15 repúblicas socialistas soviéticas se misturavam na produção cultural ao ponto de criarmos, ao menos no Ocidente, um imaginário homogêneo. Imaginário distorcido, pois que sequer a Ucrânia é homogênea, tendo o país mesmo uma significativa subdivisão étnica e territorial, celeiro de conflitos.

Filmes e livros, sobretudo os filmes, desenham para nós as complexas conjunturas históricas. Embora habitualmente eivados de visões ideológicas, damos o desconto e recorremos a eles para formarmos um quadro um pouco mais aproximado do cenário real. Um pouco mais, somente, pois  o privilégio da compreensão não nos é dado.

Pôster russo de “Vladivostok”

Porém, o grau de empatia que temos pelos povos destes países é muito maior do que o que temos usualmente por povos orientais, árabes/muçulmanos em particular. Basta vermos a cobertura jornalística europeia – e também brasileira –   para percebermos como todos estão muito tocados pelo drama da guerra em curso. Empatia de raça, ou desumanização a partir da raça, é algo que sempre nos vem à mente quando pensamos no quanto somos indiferentes às guerras da África e do Oriente Médio. Pensamos fundamentalmente em Edward Saïd, mesmo que não caiba digressão tão grande. Entretanto, é bom termos no horizonte de nossos achismos que tudo o que é mostrado em Vladivostok seria mostrado de outra forma – e recebido de outra forma – se o ponto de vista não fosse eslavo. Elementar.

Drama pífio – O eslavo é o “outro”, mas um outro pelo qual nutrimos, dizem, um certo afeto, pois ele se parece conosco.  Pois bem, depois destas articulações um tanto abstratas, vale frisar que Anton Bormatov dirigiu principalmente séries de TV na Rússia, e ostenta  uma filmografia pífia para o cinema, como informa o IMDB. Em Vladivostok ele apresenta um drama com momentos de suspense, por meio um enredo batido e circunscrito ao cinema de gênero: jovem bom e honesto foge após matar por acidente o seu comandante no Exército. Na fuga, encontra um amigo que o ajuda e uma jovem meio frívola por quem se apaixona.

Para a embaixada russa no Brasil, o filme  vale pelo cenário socioeconômico, para o público de fora observar a Rússia moderna, com seus trens de alta velocidade, carros de luxo, pontes estaiadas. Portanto, exibe um país distante da precariedade soviética, um cinema contemporâneo, longe dos sombrios épicos de guerra, e um protagonista de  moral exemplar.

Com uma trilha musical enjoativa, forjada em clichês, o enredo  é narrado com o clássico recurso literário que usa a testemunha dos fatos: em um trem, homem conta história  para um escritor (no caso, um roteirista de cinema) através de um longo flashback.  Vladivostok, cidade portuária da Rússia, vizinha da China, do Japão e das Coreias (por isto se explica a quantidade de sul-coreanos no albergue que o protagonista vai parar), situa-se no final da famosa ferrovia transiberiana. Mas é o porto que vai ocupar lugar central na trama. Um porto estratégico para a Marinha russa, por onde Viktor (Andrey Gryzlov) quer escapar, ajudado pelo amigo Rinat (Ivan Shakhnazarov).

Viktor junta-se à mocinha Nika (Anastasia Talyzina), perseguida pelo namorado mafioso e, claro,  violento. Em meio a isto, há a citação de Acossado, ou seja, um personagem fugindo da polícia. Aliás, tudo é motivo para citação para a moça cinéfila, mas a citação relativa a Godard traz uma chave com Poiccard/Belmondo que não pode ser desprezada.

Impregnado ou não de cinema, Vladivostok seria um thriller romântico de talho comercial, desimportante para o espectador mais exigente, não fosse uma sombra metafórica instigante: o vírus que ainda não tinha demonstrado sua força, somado à guerra no momento em que o filme é exibido agora.  Curioso que a filmografia russa-soviética, absolutamente pródiga em clássicos sobre as guerras, em especial sobre a invasão alemã na Segunda Guerra, consegue mesmo com um título inocente como Vladivostok estar sempre atrelada aos conflitos bélicos.

Se o coronavírus e o fechamento de fronteiras altera os planos do fugitivo Viktor, no extrafílmico a guerra de Putin contra a Ucrânia faz com que irremediavelmente nosso olhar fique contaminado. E a ironia é que o Brasil aparece nos diálogos como possível alternativa de destino para Viktor, porque o país não havia fechado suas fronteiras por causa da pandemia. Ocorre que ficou russo por aqui e Viktor teria que fugir também do vírus (por trágica ironia, no Brasil a mortalidade por Covid-19 ficou cinco vezes maior do que a média mundial).

Com boa vontade, pode-se dizer que o ponto positivo de Vladivostok  está no aproveitamento dramatúrgico dos limites que uma pandemia impõe e como isto pode ser usado em um roteiro policial.  Noves fora, se o filme passa longe da grandeza de parte da filmografia russa, serve para  construirmos relações entre a pandemia e a guerra como fenômenos reais e alegóricos para os quais somos impotentes.

O filme pode ser visto até amanhã (domingo, 28), às 19h, na mostra Cinema Soviético e e Russo em Casa,  no Cineclube Digital da CPC-UMES no Youtube.

Veja aqui:

 

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