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Críticas

Síndrome da Apatia

A crise migratória em cenário sueco

Por Ivonete Pinto | 08.06.2025 (domingo)

Síndrome da apatia (Quiet Life, Fra./Sué./Ale./Est,/ Gre./Fin., 2024), de Alexandros Avranas, é um filme estranho. Sugere que vai enveredar para o terror, para o surrealismo, para o drama social, e acaba indo para outro caminho, alcançando um registro próprio, numa espécie de universo paralelo.  É sobre refugiados, mas não se parece em nada com tantos outros sobre o tema. Por acrescentar um outro perfil de imigrantes, em um país como a Suécia, tão asséptico e tão longe dos procedimentos americanos, por exemplo, o filme ilumina mais um lado deste que é o grande desafio do nosso século: como resolver a crise migratória do mundo.

No enredo, temos uma família, o casal Sergei (Grigory Dobrygin) e Natalia (Chulpan Khamatova), ambos eram professores na Rússia, e suas duas filhas. Eles se inscrevem num programa para migrantes do governo sueco, com direito a alojamento e alimentação. Tudo no mais alto padrão de conforto. Padrão sueco.  Só que tudo é temporário, pois a família está solicitando o status de refugiados, já que Sergei pede asilo político. O serviço de migração, muito seco-sueco,  não encontrou provas suficientes de que o professor sofria perseguição onde vivia. Não haveria provas de que ele foi atacado fisicamente  a mando do governo russo por ter, enquanto professor, feito críticas à falta de democracia do regime. O visto de permanência foi negado. A família tem dez dias para apresentar provas. A filha mais nova testemunhou o ataque, está traumatizada, mas agora ela teria que falar para assegurar as provas. Então ela apaga.

A família russa que tenta o programa de imigração na Suécia

A menina sofre a Síndrome da Resignação, que se abate principalmente em crianças refugiadas. Elas se desassociam da realidade, como um mecanismo de defesa, e entram numa espécie de coma. Ou seja, muito mais do que propõe a simples “apatia” do título brasileiro. O título original, Quiet Life, é mais poético, mas tampouco dá conta do drama mostrado. Mesmo quem não presta muita atenção na paleta de cores de figurinos e cenários nos filmes, deverá ter sua atenção chamada para os tons de bege que saltam da tela e configuram bastante significado.

A atmosfera estranha do filme se justifica pelo absurdo da situação – e nada a ver com os absurdos de outro diretor grego, Yorgos Lanthimos. A doença não tem ainda explicações da ciência e o filme traduz este tatear no escuro. Mais que uma doença, é um fenômeno ligado ao trauma.  Uma condição psiquiátrica rara e que de uma hora para outra pode passar, mas pode levar anos.

Enquanto isso, os atingidos pela síndrome vivem uma existência vegetativa.  Há denúncias de que pais treinam os filhos para obterem asilo. No entanto, consta que são milhares de casos e o governo sueco tem até clínicas para alojar/depositar/tratar/cuidar das crianças. O verbo aplicado depende do ponto de vista. O do filme, por um lado mostra uma autêntica preocupação com as crianças; por outro, revela uma incrível crueldade para com os pais, que têm seus filhos tirados da convivência familiar.  Não se trata do mesmo retrato da crueldade, como o que vemos nos Estados Unidos, onde a brutalidade é de outra monta, alcançando a selvageria.

No abrigo-hospital do filme, as crianças com a síndrome vivem reclusas e, depois que os pais conseguem tê-las de volta, ainda que paralisadas [spolier: a filha adolescente  também entra no estado vegetativo da irmã mais nova], a família vai viver em um porão sem luz, escondida. Em uma cena, o contato com a luz do dia e a água de uma piscina funciona como metáfora de um renascer.

Luz como metáfora para o renascer

Possivelmente um outro aspecto da estranheza que  Síndrome da apatia  provoque é quanto ao perfil de migrante. Não estamos acostumados a vê-los bem vestidos, dominando a língua local, e mesmo assemelhando-se aos locais (as meninas loirinhas parecem saídas de um filme do Bergman). A nossa empatia para com eles tende a ser menor do que se assistíssemos a dramas mostrando pobres latinos, sírios, palestinos ou africanos. No filme, não há imagens que nos permitam identificar a origem das crianças internadas com a síndrome. Vemos apenas mais dois exemplos de países da Europa, gente que não sofreria maior preconceito nas ruas, mas igual precisam ser regularizados e vivem em pânico por causa de uma eventual recusa.  Este pânico, na cabeça de crianças, tem um impacto que mal podemos imaginar, independente da etnia.

Um letreiro final informa que as crianças  que sofrem a síndrome vêm de ex-repúblicas soviéticas, da Rússia e da ex-Yuguslávia. E que são milhares de casos.

Conclui-se que como a crise migratória só cresce, a síndrome vai crescer na mesma proporção e, quem sabe, mais filmes virão sobre o tema. Uma rápida consulta no ChatGPT diz que existem já os longas documentais  Life Overtakes Me e Wake Up on Mars, sobre crianças refugiadas na Suécia, e o curta documental Children Without a Voice. Síndrome da apatia é o único filme de ficção sobre o tema até agora. E sua produção coube a uma equipe talhada para a tarefa: o diretor  Alexandros Avranas  (Miss violence, 2013, Melhor Direção em Veneza) é grego, o roteirista Stavros Pamballis é do Chipre, o pai é interpretado pelo russo Grigory Dobrygin,  a  atriz que faz a mãe, Chulpan Khamatova, é tártara (hoje Rússia). A propósito, ela foi a protagonista de Luna Papa, uma comédia tresloucada , multiétnica que fez sucesso há umas duas décadas. As duas filhas do casal , uma é sueca (Naomi Lam) e a outra russa vivendo na Suécia  (Miroslava Pashutina).

Na equipe predominam nomes suecos, afinal é uma produção majoritariamente sueca. Mas com tantas nacionalidades envolvidas, é comum encontrar a informação de que se trata de um filme “europeu”. É a Europa, enfim, apesar de sua diversidade e para além do consórcio comercial denominado Comunidade Europeia, apresentando-se como uma Nação a reunir tantas etnias e tantos dramas.

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