
29º Cine de Lima (2025) – O Agente Secreto
“O Agente Secreto” e seus zooms
Por Ivonete Pinto | 09.08.2025 (sábado)

O agente secreto (2025) foi o primeiro filme exibido na categoria de ficção da 29ª edição do Festival de Cine de Lima. Na noite anterior, a abertura do evento peruano foi com a produção espanhola Sorda, de Eva Libertad. Mal o festival começou, o burburinho em torno dos brasileños é grande. São três filmes do Brasil entre os treze concorrentes ficcionais. Além do título de Kleber Mendonça, também foram selecionados Sendero Azul (O Último Azul, de Gabriel Mascaro), e Suçuarana (Clarissa Campolina e Rodrigo Oliveira).
Na manhã desta quinta-feira, após a sessão de O agente secreto, muitas pessoas nos perguntaram (a Rodrigo Teixeira, que está no júri oficial, e a mim, no júri da crítica), afinal qual era a história da perna cabeluda. Só mesmo pernambucanos para explicarem a lenda urbana da perna que atacava casais em um parque do Recife na década de 1970. E seria verdade que tanta gente morre no carnaval? Plateias estrangeiras têm alguma dificuldade em reconhecer o que é ficção e o que é invenção. E por vezes implicam com o grau de inverossimilhança que encontram nos nossos filmes. Se eles soubessem que o Brasil é que é inverossímil. Em todo caso, coube à personagem de Isabél Zuaa e ao próprio Marcelo/Armando vivido por Wagner Moura comentarem as bizarrices mais ou menos assim: como uma história dessas está no jornal, como notícia?

Plateia no 29º Fest. Cine Lima
A “perna cabeluda” é só mais uma das figuras que recheiam o sexto longa de Kleber Mendonça. Há muito mais de metáfora a ilustrar a violência da ditadura no Brasil, neste que é o filme mais maduro do diretor e roteirista pernambucano. Maduro talvez não seja a melhor palavra, porque pode remeter a sisudo. Seria o filme mais bem resolvido, o que traz o roteiro mais intrincado e que vai se montando como um lego, com peças bem azeitadas. Tudo funciona, com destaque – como sempre – para a trilha sonora (não original), e desta vez com mais intensidade para os movimentos de câmera (a fotografia é assinada pela russa Evgenia Alexandrova). Os zooms, supõe-se, seria uma ideia mais do diretor do que da russa, e acontecem sobre elementos-chave do cenário, como as fotografias de Ernesto Geisel na parede (a história se passa em 1977).
Zoom – Se o travelling é uma questão de moral como disse Godard no contexto de uma imagem em um campo de concentração, poderíamos dizer que o zoom no contexto de uma ditadura sanguinária é uma questão de esclarecimento. Ou seja, o filme aponta categoricamente para a imagem do responsável pela ditadura. O zoom a serviço da obrigação ética de pensar o Brasil de hoje relacionando-o com o Brasil de ontem. Não se trata do zoom brusco como quebra de linguagem que quer chamar a atenção para si. É estilo e é recado político.
O diretor incorpora o recurso como uma bossa dos anos 1970. Mendonça tem influências marcadas nesta década e hoje, depois de tantos filmes, acompanhamos suas preferências de movimentação de câmera como procedimentos formais, organizados em torno de histórias relativas há décadas passadas. Especialmente em Aquarius (2016) e em O agente secreto, o diretor nos conduz a situações da nossa história, através de um inventário que vai do particular (a família, as salas de cinema, a cidade) ao geral (o sistema político, o progresso, o país).
Se estou sendo um tanto genérica é porque o filme ainda não estreou no Brasil e porque, como jurada, não cabem apreciações de mérito fora de hora. Mas o fato é que O agente secreto oferece uma visão inovadora ─ ou pelos menos muito pouco explorada ─ quanto aos mecanismos de sustentação do regime militar.

Ditadura civil-militar em questão
Nós sempre reclamamos da escassa quantidade de filmes brasileiros que enfrentavam o tema da ditadura. Lamentamos que só os argentinos traziam com frequência novas versões do seu golpe militar por meio de roteiros bem resolvidos, que viravam narrativas de amplo alcance de público.
Pois o cinema brasileiro pouco a pouco vai cumprindo sua função (uma delas), de olhar para o passado e assim poder enxergar melhor o presente. Se recentemente tivemos Ainda estou aqui (Walter Salles, 2024) trazendo a perspectiva de uma dona de casa que enfrentou o regime militar, agora Kleber Mendonça exibe um aspecto do regime que é fundamental: a relação triangular entre militares, polícia civil e empresários. Militares, aliás, aparecem de uma forma bem simbólica, através de um criminoso que foi expulso do exército (o que nos leva imediatamente para o caso de Bolsonaro, que não foi expulso, mas foi reformado e continuou praticando crimes). Polícia civil/milicianos e industriais é que ganham protagonismo e a devida culpa no cartório.
Só de uns tempos para cá é que passamos a chamar a ditadura pelo nome correto, que é ditadura civil-militar. No filme, as sequências envolvendo o industrial da “Eletrobras”, são um dos pontos altos. Dirigindo uma estatal para enriquecimento próprio, o personagem é o elo entre o pesquisador vivido por Wagner Moura e os matadores de aluguel.

Diversidade étnica nos personagens de Kleber Mendonça
O Brasil de Kleber Mendonça tem tubarões, pernas cabeludas, sangue em vibe gore, alemão nazista, angolanos, redes de apoio a perseguidos políticos lideradas por uma velhinha (uma das personagens mais carismáticas do cinema nacional, Tânia Maria, descoberta em Bacurau), milionárias do bem e tantos outros ingredientes que só mesmo uma duração de 158 minutos para dar conta. E a engenhosidade do diretor-roteirista para dar sentido a tudo isso é notável.
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