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Festivais

38ª LIFF (2024) – Ainda Estou Aqui

Roteiro e performances admiráveis

Por Ivonete Pinto | 16.11.2024 (sábado)

– Cobertura do 38º Leeds International Film Festival (LIFF)

LEEDS (ING.) – De tudo o que tem sido falado sobre Ainda estou aqui, a presença da casa, como personagem, tem sido uma constante. Um longo travelling final não deixa dúvida da importância simbólica da residência dos Paiva na trágica história deles. Roberto DaMatta tem insights interessantes no livro “A Casa e a Rua” (1997), chamando a atenção para a casa e a rua serem  entidades morais. Para o antropólogo, as pessoas apresentam um comportamento em casa e outro na rua.

A casa de Ainda estou aqui é um polo de encontros de amigos e familiares, o que para o regime militar era um problema. Os amigos do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), assassinado pelo regime, tinham implicações com a resistência à ditadura.

A eloquência da dor no rosto silencioso de Eunice (Fernanda Torres)

Eunice Paiva (Fernanda Torres), como quase todas as esposas de envolvidos com a resistência, para sua segurança era poupada das atividades políticas do marido. Mas a casa, não importa o comportamento de seus ocupantes, não era nenhum lugar sagrado e indevassável como prega o senso comum. Para os militares não era.

Reinterpretando Roberto DaMatta – e ao mesmo tempo o contradizendo –, a relação que gostaria de fazer é a de que a casa dos Paiva refletia o caráter público e o caráter privado da família. O pai amoroso, bem humorado, com um passado político digno dadas as circunstância (teve o mandato cassado como deputado  em 1964), não era diferente do cidadão que se sentiu impelido  a se envolver com a resistência. Um envolvimento discreto, apenas ajudando quem estava vivendo na clandestinidade. É de uma das falas de um amigo de Paiva, pertencente ao grupo que frequentava sua casa, que vem um argumento que não deixa dúvidas. Ele diz à Eunice, tentando explicar porque o marido tinha sido preso, que era impossível não se envolver. Ou seja, para um cidadão honesto, correto, humanista, democrata, era impossível não tomar partido, não fazer algo frente ao que acontecia.

Talvez a frase desse amigo possa ser uma boa síntese da representação da casa, como elemento que não pode se desvincular da realidade social. Da esfera privada que não se separa da pública quando assuntos como a violência de um regime atingem a sociedade.

Roteiro – Ainda estou aqui, como expressão artística, é um exemplar coerente na obra de Walter Salles. Estrutura de produção internacional, clássica e competente. Mira  um amplo público, trabalhando a narrativa de modo claro, com informações reiterativas, sem margem para lacunas ou piruetas de linguagem. O uso da música não tem excessos, embora não deixe de incorrer na velha tática de reforçar o que já está na tela.

Uma família amputada, que segue em frente de cabeça erguida sob o alicerce de Eunice, mãe de cinco filhos.

Para o espectador brasileiro, consciente quanto à natureza e impacto da ditadura civil-militar, há alguns exageros didáticos. Mas para plateias estrangeiras, não há sobras. O roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega  (baseado na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva) é engenhoso em condensar o livro, com soluções dramatúrgicas precisas. Como quando o personagem do filho, Marcelo, surge de cadeiras de rodas na elipse de mais de duas décadas. A explicação para tudo o que aconteceu com ele, do acidente que o deixou tetraplégico  à fama como escritor, é resolvida com uma simples e curta cena. Uma cena para ser apresentada em aulas de roteiro (aliás, o fine ganhou o prêmio de melhor roteiro  em Veneza).

Evidentemente, a performance dos atores é admirável, sobretudo a de Fernanda Torres, em especial nos seus momentos sem falas e na cena do interrogatório na prisão. Tal performance  igualmente  funciona  para a compreensão das audiências estrangeiras. Na sessão em dia de semana do festival de Leeds, com uma plateia formada majoritariamente por ingleses, curioso notar o absoluto silêncio, quebrado apenas na sequência final, com a entrada em cena de Fernanda Montenegro. Nos longos planos fechados em seu rosto, era possível ouvir a respiração mais forte de alguns choros contidos.  Também foi possível observar o total interesse, pois permanecer na sala para ler a totalidade dos créditos, mesmo após as mais de duas horas de duração, é um bom sinal.

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