X

0 Comentários

Críticas

Bacurau (crítica)

“Bacurau”, ou… o que p*%#@ é essa?!!

Por Luiz Joaquim | 15.05.2019 (quarta-feira)

Os poucos brasileiros, felizardos, que estão no Grand Théâtre Lumière, Cannes, presentes na primeira sessão pública para o mundo de Bacurau – sessão encerrada no momento em que publicamos essa crítica aqui no CinemaEscrito (às 19h10 do Brasil, meia-noite e 10 minutos da França) – deverão estar se entreolhando por agora, ao final do filme, e perguntando a si próprio algo como: “Mas o que foi mesmo isso que acabei de ver?!”.

Essa deverá ser a habitual reação que o filme irá provocar na cabeça de outros brasileiros quando tiverem acesso à nova produção de Emilie Lesclaux, com direção conjunta de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.

Isso porque o filme que representa o Brasil na corrida pela Palma de Ouro nesta 72ª edição do Festival de Cannes, podemos dizer, dificilmente encontra um par no cenário da nossa produção cinematográfica nos últimos 25 anos. Bacurau é um verdadeiro E. T. na filmografia brasileira. Qualquer tentativa de encaixotá-lo dentro de um gênero específico – ou intenção dramatúrgica – poderá pôr em xeque a própria análise que o tenta classificar.

Sendo assim, a tal pergunta, entre o tom atônito e o curioso, feita a si próprio pelo espectador brasileiro é saudável se o seu dono se der ao trabalho de processar e maturar as dezenas de sinais que a dupla de realizadores estabeleceu aqui para contar o que se passa no fictício município de “Bacurau”, a “oeste de Pernambucano, daqui a alguns anos”.

Apesar da direção conjunta, e de um caminho (bem) incomum para o padrão do cinema feito no Brasil, Bacurau guia seus espectadores para um lugar não tão incomum se tivermos em mente os anteriores longas de ficção feitos por Mendonça Filho. Com eles, teremos uma ajuda para perceber a linha discursiva (estética e política) na qual o novo filme se encaixa. Mas é importante registrar: a assinatura agora é dupla. Bacurau é fruto direto tanto da ironia fina de Mendonça Filho quanto da virulência física de Dornelles (quem não conhece o curta-metragem Mens sana in corpore sano, 2011, deste último, está na hora de se atualizar).

O que há de bonito (pela coerência) a perceber aqui é que o mesmo desenho estético (enquadramento, uso do zoom, montagem, uso da música, etc) visto em Bacurau também esteve a serviço de Mendonça em seus O som ao redor e Aquarius, com a mesma força e os bons resultados alcançados. Por si só, isso configura uma assinatura forte, mesmo que para conduzir enredos tão distintos entre si.

A própria capacidade de criar personagens satélites consistentes é também um carimbo reconhecível aqui. Na verdade, em Bacurau o protagonismo está mesmo é com a pequena localidade sertaneja; está com a identidade que ela carrega, diluída, logicamente, em todos os seus vários personagens.

Pôster oficial

Daí torna-se ainda mais interessante perceber o bom espaço dado a um elenco que apresenta tantos matizes por meio de profissionais distintos em seu metiê. Indo de Uirá dos Reis (Doce amianto), passando por Udo Kier, Edilson Silva (Brasil S/A), Clébia Sousa (O som ao redor), Buda Lira (Aquarius), Valmir do Côco (Azougue Nazaré), Ingrid Trigueiro (Rebento), sem falar no elenco americano, até chegar a Charles Hodges, este último um amigo pessoal de Kleber, que protagonizou seu filme seminal, Enjaulado (1997).

Agora, ao lado de Dornelles, essa assinatura em Bacurau ganha um traço um tanto mais forte que não deverá gerar menos polêmica (pelo contrário) que aquelas surgidas no trajeto feito pelos longas anteriores de Mendonça Filho.

Ao mesmo tempo, a linha discursiva política de interesse que liga os três longas de ficção com o nome de Kleber na direção não poderia estar mais clara e mais robusta. Ela é a oposição ao autoritarismo. Sempre. A capacidade de acessar espectadores nessa linha discursiva é de uma universalidade incrível, e o cinema é histórica e proporcionalmente popular no mundo inteiro na medida em que o bem vence o mal de maneira brutal e direta.

Nesse sentido, será bastante curioso acompanhar a vida de Bacurau quando lançado não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Isso porque a brincadeira, desta vez, traz à luz a discussão sobre a hegemonia da cultura norte-americana.

No caso, no pequeno e isolado município de Bacurau oeste de Pernambuco, daqui a alguns anos”, pode até ser que a música de fundo seja americana, mas o ritmo da dança quem dá são os sertanejos.

O enredo dá partida com a população de Bacurau se movimentando em torno do falecimento da matriarca da comunidade, Dona Carmelita (Lia de Itamaracá, uma “rainha” pernambucana, a quem Kleber já homenageou em Recife frio, 2009). Em meio às discussões sobre que rumo o povoado vai tomar após o acontecido, vamos conhecendo os personagens que compõem aquele particular ambiente. Seja pelas figuras influentes dali, como Domingas, vivida por Sônia Braga com composição visual diametralmente oposta à sua Clara de Aquarius – isto é, de cabelo branco, desprovida de apelo para a sedução amorosa, bêbada e inconveniente mas também surpreendente; ou seja por uma personagem que está voltando a Bacurau como Teresa, na pele de Bárbara Colen. Figura feminina forte e determinada.

Teresa, aliás, serve também como uma espécie de guia ao espectador. Estratégia recorrente no cinema, sua chegada a Bacurau – em viagem feita na boleia de um caminhão, guiado por um motorista (Rubens Santos) empolgado com a música do Roupa Nova – é também a chegada do espectador à comunidade.

O surreal percurso, envolvendo caixões pela estrada, abre o filme, mas não sem antes Kleber e Dornelles fazerem seu espectador “descer” ao planeta Terra até chegar a Bacurau, por uma perspectiva do espaço. Sim, é isso mesmo o que você está lendo.

As inter-relações aqui não são gratuitas, até porque nos dias que se seguem à morte de Dona Carmelita, um professor da cidade quer mostrar aos seus jovens alunos a localização de Bacurau, por um mapa digital, e a cidade simplesmente não está mais lá.

1ª imagem divulgada do filme

A atmosfera vai ficando mais e mais confusa na medida em que dois motociclistas (um deles vivido por Karine Teles) estão de passagem pela comunidade. Com eles chega o desconforto para a população local, principalmente após um de seus moradores dizer que viu um disco voador “daqueles de filmes dos anos 1950” pelos céus da redondeza.

Daí adiante não é necessário seguir com mais detalhes do enredo.

Vale mais dizer que Kleber e Juliano aqui rabiscaram (temática e esteticamente) um mundo paralelo – a comunidade de Bacurau – tão carregado de boas referências, mais uma vez, universais que pode muito bem ser equiparado a qualquer outro mundo de nossa realidade. E se olhamos para o Brasil de 2019, não irão faltar analogias.

Sobre o descaso do atual Governo Federal do Brasil contra o ensino público, Bacurau, por exemplo, nos apresenta uma já memorável analogia. A do prefeito do município “doando” livros didáticos para uma escola pública da comunidade como se estivesse descarregando lixo. O impacto da imagem, para bons olhos, pode soar tão forte quanto soou a força de se ver pela primeira vez a fogueira de livros em Fahrenheit 451, de François Truffaut.

A propósito do assunto, vale o registro que neste mesmo dia de hoje, em que Bacurau nasce para o mundo, brasileiros foram às ruas numa mobilização contra o bloqueio de recursos na ordem de 30% do orçamento, por parte do Governo Federal, para a educação pública.

De volta ao filme, há também a cena de um discurso, desse mesmo prefeito, feito para literalmente ninguém, para uma cidade vazia, sob os gritos sem dono de “vai embora”. A situação é também outro emblema que na tela ganha uma eloquência política própria do cinema. Bacurau, o filme, torna-se desde já, nesse sentido, uma obra histórica que nos fará, por exemplo, em 2049, ao ser revisto, lembrarmos de como éramos (sociedade brasileira) em 2019.

A ideia por trás do museu (= história; = cultura local) da comunidade de Bacurau, do qual seu povo tanto se orgulha, mas que nenhum estrangeiro se interessa em visitar, soa como outro recado dos roteiristas/diretores. Em outras palavras, desdenhar da história, da cultura, é desdenhar da própria sobrevivência.

Domingas (Braga) manchada de sangue. Mais uma mulher surpreendente de Bacurau. (crédito das fotos: Victor Jucá)

E por falar em referências cinematográficas, a cabeça do felizardo espectador que está saindo neste momento do Grand Théâtre Lumière está fervilhando na tentativa de contabilizar o tanto de alusões, citações ou indiretas que Bacurau apresenta com relação à própria história do cinema. 

A mais explícita está na trilha-sonora feita pelo próprio John Carpenter, entoando seus sintetizadores “oitentistas”, cujo espírito de mistério e crescente tensão é tão admirado pela dupla de diretores pernambucanos. Mas Bacurau nos deixa entrever também Mad Max (atenção para a entrada em cena de Silvero Pereira); Contatos imediatos do terceiro grau, E. T.: O extraterreste e qualquer western (sem parar por aí).

O curioso nessa salada saborosa é que apesar de não apresentar cartelas que o divide em partes – como visto em O som ao redor e AquariusBacurau parece conter pelo menos três filmes em si, cada um com proposta estética própria.

Há ainda, logicamente, aspectos visuais mais desamarrados de referência fílmica direta. A disparada de uma manada de cavalos pelas ruas noturnas da comunidade é construída como mais um elemento fabuloso deste enredo. Curiosamente a cena remete a uma referência da literatura brasileira: o romance A hora dos ruminantes (1970), do goiano José J. Veiga. No caso do livro a manada é de bois, e a pequena cidade interiorana que recebe a visita de estranhos indesejados chama-se Manarairema.

Em Bacurau – o filme, entretanto, o desfecho é outro porque “a oeste de Pernambuco” – como já disse um sábio: quem lá nasceu “e não morreu de fome até os cinco anos de idade, não se curva à nada”.

Na verdade, em entrevista publicada nas últimas semanas, Kleber e Juliano comentaram que a ideia germinal de Bacurau lhes foi fecundada durante o 42º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (2009), de onde ambos saíram premiados por Recife frio – Kleber diretor, Juliano diretor de arte. Se quiser saber mais sobre isso o CinemaEscrito dá uma dica: após ver Bacurau (só após) assista ao longa-metragem A falta que me faz, de Marília Rocha.

Mais Recentes

Publicidade