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Festivais

58° Fest.Brasília (2025) – Morte e vida Madalena

Filme de Guto Parente ri da própria agonia do cinema de garagem e encontra nele sua força

Por Marcelo Ikeda | 14.09.2025 (domingo)

Morte e vida Madalena começa onde Estranho caminho terminou: com a morte de um pai. Quase o mesmo pai, uma vez que ambos são representados pelo ator Carlos Francisco. A diferença crucial, no entanto, é que, em vez do cemitério e da citação de Bresson do filme anterior, o velório agora acontece em um cinema, o Cineteatro São Luiz, de Fortaleza. Durante o velório, o distraído Davi (Marcus Curvelo) acidentalmente pisa em um pedal que aciona a fumaça cenográfica, instalando um inesperado tom de humor que marca a obra.

É curioso que o novo filme de Guto Parente tenha aberto a mostra competitiva do Festival de Brasília logo um dia após a grande abertura com O Agente Secreto. Embora ambos dialoguem fortemente com o circuito de festivais internacionais, seus projetos e caminhos dentro do cinema brasileiro são bastante diferentes. Em um momento de intenso debate sobre a inserção industrial da produção nacional, Guto Parente nos oferece uma pequena ode ao cinema independente de feitura artesanal.

A produtora Madalena (Noá Bonoba) se vê às voltas com as filmagens de um novo filme, logo após a morte de seu pai. Os homens falham em dar conta da direção: seu pai morre; seu companheiro Davi foge; o ator substituto improvisado Oswaldo (Tavinho Teixeira) “não consegue segurar sua onda”. É a própria Madalena quem precisará dirigir esse filme. Ela lida com a gravidez, e com todos os problemas da produção de um filme: a falta de dinheiro, a burocracia dos “fundos” do cinema; a ameaça de uma greve.

Entre velório e set, Guto Parente transforma precariedade em celebração do cinema artesanal.

Se esse é um filme pessoal para Madalena por prosseguir o projeto de seu pai, ao mesmo tempo, aparentemente não há nada de muito notável no filme-dentro-do-filme. Se O Agente Secreto resgata uma nostalgia da Nova Hollywood do final dos anos 1960, no filme de Guto Parente quem ressurge é o cinema B. A ficção científica interna à narrativa parece ser quase um pastiche de um filme de Roger Corman.

Se os últimos filmes de Parente promoviam um forte diálogo com o cinema de gênero, como o terror gore em O Clube dos Canibais e a ambiência fantástica em Estranho Caminho, Morte e vida Madalena parece ser um delicioso entremeio na filmografia desse realizador cearense, que retoma certos elementos das origens de sua trajetória.

Devemos lembrar que Guto surgiu no Alumbramento, um coletivo do cinema cearense que estimulava as imbricações entre criação e vida. Vejo um diálogo desse filme com Inferninho, mas, aqui, a comunidade gregária não se reúne em um bar, e sim em um set de filmagens. São visões complementares, já que o cinema do Alumbramento acontecia simultaneamente entre o set e o bar. Um momento ao final do filme, em que o coletivo canta em um karaokê, evoca o clima típico do grupo. É também interessante como membros da própria equipe aparecem no filme (Ivo Lopes Araújo, Thaís de Campos), como se os bastidores fossem parte da própria dramaturgia da obra.

Ano passado, neste mesmo Festival de Brasília, defendi Suçuarana como um gesto de prolongamento do cinema da Teia mesmo após sua dissolução, uma comprovação de um longo  caminho de amadurecimento. Em outro texto, comentei sobre Inferninho, em relação ao Alumbramento. Já Morte e vida Madalena ressoa a experiência do coletivo mas não necessariamente num caminho de “amadurecimento profissional” em torno de suas tendências estilísticas. Talvez essa seja a aposta mais surpreendente de Guto Parente: a crença de que o cinema não precisa “amadurecer” — e talvez o amadurecimento seja justamente isso, olhar com ternura para nossas precariedades e encará-las de frente. Talvez isso seja impulsionado por um conjunto de transformações na trajetória da própria relação pessoal entre Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, que o filme, de formas múltiplas e indiretas, estabelece. No fundo, não importa muito. Pois desde Estrada para Ythaca, ou mesmo bem antes, o cinema do Alumbramento já propunha uma estrutura ficcional em que atores não profissionais davam corpo a relações vividas no campo pessoal, mas transfiguradas por meio de um filme, e não como um sentido biográfico direto.

Um filme que encara a morte e o fracasso com humor, reafirmando a ternura do cinema independente.

Em outros termos, ao mesmo tempo em que Morte e vida Madalena ressoa a experiência do Alumbramento, ele se distancia radicalmente da experiência de filmes como Passos no silêncio ou Dizem que os cães veem coisas – filmes que buscavam “amadurecer”. A cearense Tardo Filmes possui muitas relações com a pernambucana Desvia. Mas enquanto Mascaro foi para Berlim, Parente foi para o FID Marseille. Não menciono isso para legitimar uma hierarquia entre festivais como medida de sucesso, mas sim para sugerir as escolhas tomadas pelos realizadores e por suas respectivas produtoras.

Morte e vida Madalena é uma chanchada, que, de forma bem humorada, dialoga com as precariedades do nosso cinema artesanal. Mas uma chanchada sem Oscarito nem Fábio Assunção, sem star system, com atores de diferentes estados do Nordeste que também são realizadores (Noá, Curvelo, Tavinho, etc.). Um filme mambembe, mas feito com recursos do FSA e do governo do Ceará, exibido num festival internacional de prestígio. Um filme onde a experiência do cinema de garagem e da afetividade – duas palavras-chave – continua a reverberar, mas agora sem vaidade ou romantismo.

Ao final, surge Pocã. Se o filme abre com um close do pai no caixão, ele se encerra com a filha – curiosamente ambos na mesma sala de cinema. Não sabemos o que Guto precisou ou precisará enterrar para prosseguir filmando ou vivendo. O cinema de garagem agoniza mas não morre. Ficamos com Pocã – assim como uma antiga carta de despedida em outro contexto foi dedicada a Zeno, agora já grande – um plano que me lembra exatamente do final de Com os punhos cerrados, mas agora sem conotação política explícita (um filme Alumbramento sem Guto). A tão falada relação entre cinema e vida é proposta de outra forma, reelaborada por um cineasta já não mais tão jovem que, como ele próprio disse em sua apresentação, “é um homem branco de cabelos brancos, que sempre quis ser engraçado mas nunca conseguiu muito”. A aposta frontal por um tom mambembe, dada a filmografia de Parente, é corajosa, pois projeta seus próprios fantasmas para dentro da dramaturgia do filme, ao mesmo tempo que se mantém coerente com um projeto de cinema que nos remete ao Alumbramento. Me lembro de um texto do Denílson Lopes no livro Cinema de Garagem, intitulado Lições do fracasso. É como se o Guto olhasse de frente para o vulto do fracasso e da morte e risse diante dele. A suposta ingenuidade do filme é apenas aparente: em sua poética, Morte e vida Madalena é uma nota dissonante no atual circuito do cinema brasileiro, em suas rodadas de negócio e debates de regulação de seu proto-mercado. Esse definitivamente não é um filme do “cinema da retomada”.

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