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Festivais

58° Fest. Brasília (2025) – Safo

Entre ruínas e grafite, Rosana Urbes faz de ‘Safo’ um mergulho lírico no corpo e na criação

Por Marcelo Ikeda | 14.09.2025 (domingo)

Em seu premiado curta anterior (Guida, 2015), Rosana Urbes explorou o cotidiano de uma anônima funcionária de um escritório que encontra na arte uma forma de subversão de sua rotina decrépita. Agora, Safo (2025) toma como ponto de partida a trajetória não de uma anônima mas de uma artista: a poeta Safo de Lesbos.

No entanto, pouco se sabe sobre a vida e a obra de Safo, cuja poesia chegou até nós apenas por meio de fragmentos, recoletados por terceiros. A partir dessas ruínas, Urbes costura as teias que nos permitem vislumbrar rastros da presença da poeta no mundo. A ideia da costura à mão realça o caráter artesanal da empreitada: entre grafite e aquarela, Urbes traça esses vestígios com um estilo esfumaçado e hipnótico que nos remete até aos primeiros filmes de Peter Greenaway: um caleidoscópio visual que se desmancha e se refaz diante de nossos olhos, voltadas a um prazer visual, ao despertar de uma atmosfera de sensações do espectador.

As camadas de imagens que se desfolham são, em geral, de três fontes. A primeira, composta por desenhos de Urbes em torno de possíveis representações de Safo assemelham-se a estudos de corpos em movimento da Grécia antiga. Mas não os corpos atléticos de harmonia simétrica, e sim algo mais próximo à representação das ninfas – esses misteriosos seres femininos que personificavam elementos da natureza relacionados à fertilidade. As ninfas eram espíritos da natureza, que mesclavam aspectos divinos e humanos, sedutoras e belas, que despertavam paixões e também atuavam como curandeiras, transitando entre o imaginário de bruxas e curandeiras na genealogia dos deuses da Grécia antiga.

Cena do filme “Safo” (2025)

A segunda camada refere-se à presença da natureza, por meio de folhas, frutas, galhos e outros objetos que circundam o enquadramento. Nesse sentido, Safo se aproxima de Mothlight (1963), lendária obra de Stan Brakhage que incorpora asas de mariposa à película. Em terceiro lugar, surgem cadernos com anotações e desenhos da própria artista, como se incorporassem ao filme rastros do próprio processo criativo, uma espécie de making off do próprio filme incorporado à tela.

Essas três camadas não aparecem de forma sucessiva ou linear, como se fossem em blocos consecutivos, mas são sobrepostas no interior do próprio plano. Assim, o filme se compõe como uma espécie de palimpsesto, termo que remete não apenas à tradição de uma escrita artesanal, anterior aos processos industriais (como a prensa móvel de Gutemberg) mas que nos faz vislumbrar as ruínas de uma obra que emerge sob a influência de outra. A herança de Safo, essa artista que sobrevive até nós por vias indiretas, emerge como resultante desse palimpsesto pessoal e difuso. A obra de arte surge, portanto, a partir de um complexo processo de fusão de culturas e temporalidades, e não por uma influência direta e linear, muito menos por um desejo de biografia totalizante.

Sem “ilusão biográfica” ou manifesto totalizante, Urbes não busca recriar a vida ou mesmo a obra de Safo. Sua existência funciona como um ponto de partida que aciona ou desperta sensações em torno de um imaginário de um corpo e alma femininos. Também por meio de fragmentos, o curta de Urbes proporciona um mergulho em uma atmosfera lírica de sensações sinestésicas. Ainda que a voz da narradora (a própria Urbes) nos ajude a reunir alguns dos fios dessa teia numa certa relação de ancoragem, a obra não está especialmente concentrada nas informações mas em um convite para o espectador “bailar” com essa ninfa misteriosa. Os fragmentos se sobrepõem de uma forma livre e nada esquemática, como um verdadeiro estudo sobre o movimento. A montagem rítmica (entre os planos e nas camadas no interior de cada plano) nos convida a bailar pelo filme, despertando nossos sentidos. Muitas vezes ficamos atordoados ou perdidos com o excesso de sensações que se sobrepõem, uma espécie de vertigem ou transe hipnótico que nos faz sentir como se estivéssemos ingressando em uma floresta e desfolhando suas camadas interiores.

Através de Safo, Urbes expõe seu próprio processo de criação, como as páginas de um caderno cuja escrita vai se fazendo à medida do percurso do filme, em uma relação umbilical entre criação e vida. A vida e obra de Safo se entrecruzam de formas múltiplas e sugestivas com o próprio percurso de trabalho da realizadora, como um amálgama/palimpsesto. O que irrompe do desfolhar dos fragmentos da obra de Safo nos dias de hoje é aquilo que se pode vislumbrar do próprio processo do filme-vida em curso, exposto como carne viva, bailando em torno de nós.

Nesses tempos em que a animação é cada vez mais incorporada aos processos industriais, e que contornos como a CGI e a IA tornam os processos semiautomáticos, a aposta radical de Urbes numa caligrafia artesanal, em torno de um longo processo que durou mais de seis anos, transforma Safo em uma reflexão sobre os rumos do mundo contemporâneo.

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