
58º Brasília (2025) – Aqui Não Entra Luz
Filme de Karol Maia traz a perspectiva de filha de uma trabalhadora doméstica
Por Marcelo Ikeda | 18.09.2025 (quinta-feira)
– Este texto contém spoilers
Esse longa documentário investiga as memórias de empregadas domésticas em diversos estados do Brasil, percorrendo rastros da escravidão no cotidiano das famílias brasileiras. Trata-se, portanto, de um tema social bastante atual e extremamente relevante para compreendermos as contradições dos processos sociais brasileiros e as relações de exploração dos regimes de trabalho. As domésticas muitas vezes são tratadas “como se” fossem da família – e o problema está justamente no mascaramento desse hiato, uma retórica que oculta um regime de opressão.
Essa situação ainda ganha outro desdobramento quando percebemos que a realizadora Karol Maia é filha de uma doméstica: trata-se de um filme em primeira pessoa, em que a filha procura fazer o filme para também convencer sua mãe de que deve participar, e como processo de reconhecimento de sua origem.
O mote desse filme me lembra de outro documentário brasileiro: Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro. No entanto, há uma diferença: Mascaro apresentava o tema a partir de um dispositivo. As imagens não foram gravadas pela equipe do realizador mas pelos filhos das domésticas. Dessa forma, e também pelas grandes diferenças entre as domésticas escolhidas, Mascaro compõe um painel complexo das relações sociais brasileiras, em que a linguagem escolhida potencializava a complexidade dessas relações.

Entre família e opressão: o mascaramento das relações no trabalho doméstico
E daí reside a principal diferença para a empreitada de Maia. Ainda que seu tema seja relevante e as mulheres escolhidas apresentem dramas e condições de vida tocantes, a linguagem escolhida não proporciona um maior aprofundamento em um tema tão complexo, de modo que o filme permanece sobre certa platitude, inclusive numa instância um tanto reiterativa.
Sabemos que, de fato, o trabalho doméstico feminino é uma extensão do regime escravocrata, e das enormes perversões dos patrões que esmagam sua liberdade. Mas o que fazer diante disso? O que o cinema pode diante da opressão das minorias? Colocar as mulheres para descrever as situações vexatórias, os momentos de assédio moral e as relações de apagamento por meio do relato oral é o suficiente?
Sinto falta de um imaginário mais potente dessas mulheres, que possa reverberar suas memórias e seus desejos para além da clausura do trabalho doméstico. Quase todas a mulheres falam no interior de casas, como se ainda estivessem aprisionadas diante dessa realidade esmagadora. Os depoimentos das mulheres se concentram excessivamente no martírio do passado e não em um projeto de libertação e de desejo projetado para o futuro.
Exemplo sintomático dessa opção está na sequência final, em que finalmente mãe e filha contracenam – sendo a filha a própria diretora. Mas como a filha escolheu representar a mãe? Relatando como quando ela trabalhava como faxineira. Ou ainda, percebemos que a mãe resolveu participar do filme não para examinar seus desejos e sua potência como mulher mas principalmente para ajudar a filha a acabar o filme. A mãe sofre ao ver a sua filha sofrendo – e, com isso, essa mulher tem sua subjetitividade e desejos encobertos por um dever moral ligado à família.

Aqui não entra luz emociona, mas perde força crítica diante da opressão
Ainda que bem intencionado e tocante, Aqui não entra luz me parece infelizmente muitas vezes ingênuo para “jogar luz” nos complexos processos de relações de subalternidade do trabalho contemporâneo e de achatamento dos imaginários femininos. Corrobora o fato de que as domésticas sofreram abusos das patroas, mas essas continuam incólumes no longínquo contracampo – sem oferecer qualquer “luz” ao imaginário desejante daquelas mulheres.
Ainda não entra luz muitas vezes é montado para nossa comoção. Brecht defendia que a arte política não deveria provocar simplesmente a comoção do espectador, pois a catarse pode soar como um mecanismo conservador que afasta o espectador do pensamento crítico. Isso me parece um risco grave, especialmente no atual contexto político brasileiro, extremamente autoritário e perverso. Precisamos de narrativas mais potentes para dar conta de nossas contradições como sociedade.















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