X

0 Comentários

Críticas

Hamnet: A Vida antes de Hamlet

A arte como tradução da dor humana

Por Luiz Joaquim | 24.12.2025 (quarta-feira)

Há sempre uma natural curiosidade pela biografia de imortais ou pelos bastidores de suas obras-primas. A escritora irlandesa Maggie O’Farrell mirou nos dois objetos em seu romance Hamnet (2015), vencedor de prêmios literários importantes ao redor do mundo, ao indagar no que a morte de Hamnet, o filho de 11 anos de William Shakespeare (1564-1616), foi definidor para a criação da peça Hamlet.

Um entre os mais de dois milhões de leitores do best-seller estava a cineasta Chloé Zhao. A realizadora chinesa virou notícia, também mundial, há quatro anos, ao receber três importantes estatuetas do Oscars com o seu Nomadland: Sobreviver na América. Na noite da premiação, a obra foi eleita como melhor filme, melhor direção e entregou o Oscar também para a protagonista/produtora Frances McDormand (como melhor atriz). Vale dizer que Nomadland havia também conquistado o Leão de Ouro em Veneza no ano anterior. 

Dalí adiante, Zhao tinha cacife suficiente para escolher o que bem desejasse, como próximo projeto, para levar às salas de cinema. Errou feio com a bobagem “marvelesca” Eternos (2021) num movimento clareamento equivocado sob a sedução da indústria, mas, agora, no próximo 15 de janeiro, estreará no Brasil um novo produto seu de cara mais autoral – com todas as limitações que uma produção de US$ 30 milhões implique no quesito ‘autoral’. 

Ainda que tenha capengado no ambiente da indústria gringa – arrecadou US$ 9 milhões desde seu lançamento nos EUA em 26 de novembro -, Hamnet: A vida antes de Hamlet vai bem nos círculos da crítica mundial de cinema. A métrica mais recente o apresenta como forte concorrente na premiação do Globo de Ouro (com agenda para 11 de janeiro de 2026) em seis categorias: Filme Dramático (concorrendo com o pernambucano O agente secreto), Direção, Atriz (Jessie Buckley), Ator Coadjuvante (Paul Mescal), Roteiro e Trilha Sonora. 

Zhao (e) no set de “Hamnet: A vida antes de Hamlet”

Mas… e o filme?

Aqui enxergamos William Shakespeare antes do reconhecimento. Encontramos o nobre escritor apresentado no contexto de sua humilde família, como o maltratado ajudante do pai no fabrico de produtos de couro para sobreviver na pequena comunidade rural de Stratford, a cerca de 165 quilômetros de Londres.

Entretanto, apesar do contexto social modesto, há uma carapaça esteticamente asséptica no todo que cobre Hamnet, incluindo aí figurino, direção de arte e locações cuidadosamente “sujas” que correspondem ao que se espera de uma obra que irá tratar da nobreza da literatura mundial pelas opções da indústria cinematográfica.

O que vemos, portanto, é uma beleza exuberante, sim, que sobressai aos olhos do espectador, estampando a natureza “selvagem” nas florestas de Stratford como pano de fundo, mas com ela (a natureza) emoldurando não de maneira crua o romance do pobre William (Mescal) com Agnes (Buckley) – a filha renegada de uma família de melhor condição social – mas sim emoldurando-o numa forma esteticamente “civilizada”  

Ainda que a estética busque a assepsia, há momentos de simples e delicioso deslumbre para os olhos na fotografia de Lukasz Zal.

Em meio a opção estética da produção, a fotografia do polonês Lukasz Zal – conhecido pelos importantes Ida (2013) e Zona de interesse (2023) – encontra, felizmente, um ou outro momento raro de iluminação consagradora. Daqueles que te faz piscar os olhos porque entendemos que estamos olhando algo realmente comovente do ponto da composição da imagem. Mas tais momentos são poucos e rápidos em Hamnet.

E, num certo sentido, é compreensível. A história criada por O’Farrell, e adaptada para roteiro cinematográfico pela própria Zhao, tem muito texto a entregar. Precisa nos apresentar em duas horas o encontro e o surgimento do encantamento entre William e Agnes, as complicações de seu matrimônio, a chegada dos filhotes, a ruptura entre o artesão e a sua família (com Emily Watson interpretando a sua mãe) para lançar-se no teatro em Londre e, finalmente, a razão pela qual esta história existe: relacionar a perda de um filho com uma criação artística. 

Emily Watson é Mary, mãe de William Shakespeare

O enredo de Hamnet cadastra essa relação de dolorosa criação artística por parte de Shakespeare de maneira comovente e, por que não, didática. Sim, didática, mas aqui num sentido elogioso do termo. 

Trazer, por exemplo, a célebre frase “Ser ou não ser, eis a questão”, para o contexto de perda do autor, explicitando o que há em jogo na decisão entre “existir ou deixar de existir” é sim uma forma de nos aproximar do clássico sem reduzi-lo ou menosprezá-lo. 

Não é uma fórmula nova, essa bolada pela escritora O’Farrell, mas quando bem executada, tal qual o faz Zhao neste filme, consegue sequestrar nossos olhos, ouvidos e também emocionar. 

O alvo de Hamnet, livro e filme, é dizer o quanto uma dor profunda vivida por um verdadeiro artista pode ser impossível de ser traduzida numa simples conversa, mas é passível de ser transformada numa obra de arte que se tornará a mais eloquente forma de comunicar essa gigantesco buraco na alma. Mais do que comunicar, será competente o suficiente para transmitir agonia semelhante aos seus espectadores, criando empatia, fazendo o mundo sofrer o colosso de sofrimento que o artista sofreu – ou ao menos algo próximo disso.

Aqui um parênteses: Vem a mente, em termos comparativos numa escala microscópica e local, o que o cineasta Daniel Bandeira fez em seu curta-metragem Tchau e benção (2009), dando vida, a partir de uma pessoal desilusão amorosa, a uma obra viva, pulsante de qualidade criativa e eloquente em explicar o seu estado de espírito ou o de qualquer um que já tenha sido duramente largado por outro alguém. 

Voltando a Hamnet: A vida antes de Hamlet, podemos dizer em outras palavras que o filme ilustra de que forma uma obra de arte age quando ela verdadeiramente acessa outro ser humano. Estamos nos referindo aqui no que resultou a peça Hamlet, e os seus efeitos, ao longo de mais de 400 anos de existência.

Algumas raras emoções são mundialmente “traduzidas” pela arte

É a esse instante que Hamnet busca. Quer imprimir (e imprime) boa emoção humana, com o apoio de dois grandes atores de sua geração. Mescal e Buckley guardam uma força dramatúrgica que não passa despercebida por ninguém. Mesmo que num ou noutro momento de Hamnet a “verdade” da naturalidade dos personagens surja mascarada por alguma técnica de interpretação aqui claramente aplicada.

O saldo é, porém, positivo, numa combinação de muitos talentos unidos em prol da força e da fragilidade do que é ser humano e do quanto a arte pode nos ajudar em nossa pequenez. 

Curiosidade: Emily Watson e Paul Mescal já interpretaram mãe e filho em outro filme. Não tem muito tempo, foram vistos em Criaturas do senhor (2022), ele como um jovem que volta da Austrália para a Terra Natal, Irlanda, e coloca a sua mãe numa encruzilhada moral.

Mais Recentes

Publicidade

Publicidade