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Críticas

Zona de Interesse

O anestesiador som do inferno ao redor

Por Luiz Joaquim | 08.02.2024 (quinta-feira)

Como é corajoso e talentoso esse Jonathan Glazer. Mas disto muitos sabem. Quem conhece o seu histórico, particularmente Sexy beast (2000) e Sob a pele (2015), já entendeu que o realizador britânico não está aqui para propor filmes ordinários, seja pelas provocações temáticas, seja pelas opções próprias da sintaxe cinematográfica. 

Glazer brinca – no melhor dos sentidos, o de “estar à vontade” – com o cinema para, em suas infinitas alegorias nos estapear na cara sobre a hipocrisia de nossa sociedade. 

Por isso, e por outras razões, seu mais recente rebento – Zona de interesse (The Zone of Interest, EUA/RU/Pol., 2023) chamou atenção em Cannes 2023  quando, de lá, saiu com o Grande Prêmio do Júri, o Prêmio da Crítica, o prêmio de trilha sonora (para Mica Levi) e o prêmio da Comissão Superior Técnica (o CST). 

O filme também passou pelo Globo de Ouro no mês passado, concorrendo nas categorias melhor filme dramático, melhor filme internacional e melhor trilha sonora. Glazer e companhia passarão ainda pelo tapete vermelho do Oscar no 10 de março para brigar por cinco estatuetas: melhor filme, filme internacional, direção, som e roteiro adaptado. 

Por falar em roteiro adaptado (por Glazer), o que ele faz aqui é um belíssimo exercício de readequação do que há no romance de Martin Amis. Ainda que não tenhamos lido o livro, está claro que os estímulos visuais combinados com a entrada do desenho de som ao longo do enredo é desconcertante em sua função de emprestar força ao discurso do filme. 

Há uma narrativa interna, para dentro, em Zona de interesse que acompanha a família do oficial nazista que comanda o campo de concentração em Auschwitz. Rudolf Höss (Christian Friedel) é competente em sua funções de administrar e desenvolver avanços técnicos em sua capacidade de exterminar judeus coletivamente, fazendo de Auschwitz uma referência dentro da medonha lógica nazista.

Rudolf (Friedel) orgulhoso de sua casa e do seu trabalho ali do lado.

Mas o foco está apontando mesmo é para a sua família formada pela esposa Hedwig (Sandra Hüller, de Anatomia de uma queda) e seus quatro filhos pequenos mais uma bebê. 

Rudolf e Hedwig vivem numa ampla casa de sonhos, com vasto espaço verde, uma piscina e uma horta particular bastante diversificada. Completa a mordomia as/os escravas/os (sexuais, inclusive) judeus que servem a mesa e, secretamente, aos instintos do casal.   

Já vimos algumas histórias assim no cinema, mas o que intriga em Zona de interesse é o que existe em sua narrativa externa, para fora, no filme. Ela se expressa fortemente pelos sons de horror que vêm da instalação vizinha, muro a muro com a casa de Rudolf e Hedwig: o campo de extermínio de Auschwitz. 

O detalhe aqui é que Glazer nos apresenta a essa família com sua inabalável maneira de tocar a vida enquanto urros de dor ou sofrimento, de tiros e de berros nazistas vêm do outro lado do muro se impondo ao cotidiano de trivialidades daquela residência. 

Hedwig (Hüller) e sua linda bebê apreciam as flores ao som de judeus sendo incinerados.

A força dramática da combinação dessas narrativas interna e externa ao filme dão uma bem vinda estranheza a Zona de interesse, sendo o som um elemento crucial aqui. Não à toa, a compositora Mica Levi (mesma de Sob a pele) vem aparecendo nas indicações de diversas premiações para trilha sonora.

De cara, Glazer, repetimos, em sua coragem e talento, se apropria da melodia gutural criada por Mica para, já nos créditos de abertura, impregnar o espectador com a atmosfera grotesca que cerca o dia-a-dia da família de Rudolf e Hedwig. 

Dos 105 minutos de duração do filme, ao menos um inteiro (e infinito) minuto é dedicado exclusivamente à trilha de Mica. Quando dizemos ‘exclusivamente’ significa que o espectador ficará mergulhado na total escuridão de uma sala de cinema em sua solitária e aflitiva relação com essa harmonia sonora que remete a algum recanto do inferno. A abertura de Zona de interesse é, por nossa memória, uma das mais eficazes em quebrar o gelo do mundo real para nos fazer entrar (arrepiado) instantaneamente no mundo do cinema.

Como se não bastasse, Glazer nos brinda com um simples e eficaz efeito visual que distingue as cores (ou o positivo do negativo) da vida do casal nazista para o das serviçais judias quando uma delas se arrisca para ajudar os prisioneiros com comida. 

Sobre a lógica nazista. Sobre os ecos no mundo de hoje.

E para quem ainda pensa que Zona de interesse (atenção ao título do filme) é apenas sobre uma família nazista que mora colada muro com muro a um campo de concentração, seria bom abrir os olhos e perceber em que sociedade estamos vivendo em 2024, seja no campo doméstico, da família, ou no das nações em seus imbricados interesses internacionais. 

Com o nosso foco cada vez mais direcionado ao nosso umbigo, o borrão no qual se tornou o outro no horizonte, mesmo que próximo, tende a se distanciar cada vez mais rápido de nós, nos alimentando com o gosto e o ódio pela diferença. 

Não precisamos ir muito longe no tempo e no espaço para entender o significado disso. É só relembrar o comportamento da sociedade brasileira nos anos da gestão anterior feita pelo governo federal. Pura segregação para fascistas crescerem em sua zona de interesse. 

É sobre isso, o novo filme de Jonathan Glazer.

Em tempo: O filme entra em cartaz dia 15 de fevereiro mas já pode ser visto a partir de hoje (8) nos cinemas em caráter de pré-estreia.

 

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