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Críticas

Dois Córregos

Padrinho de batismo de Carlos Reichenbach inspirou argumento de “Dois Córregos”

Por Luiz Joaquim | 27.05.2007 (domingo)

texto originalmente publicado no Jornal do Commercio (Recife), em 10 de janeiro de 2000.

O Cineasta Carlos Reichenbach (diretor de Alma Corsária), viveu, por alguns dias de sua adolescência, em uma casa de campo à beira de uma represa. Nessa época, conheceu um padrinho de batismo que se escondia da repressão militar. A imagem desse homem angustiado, obrigado a abandonar a família para tentar reconstruir sua vida, serviu como um marco divisor na cabeça do jovem Reichenbach. A lembrança serviu também para o diretor estruturar o argumento de Dois Córregos, seu 12º longa, em cartaz pela segunda semana no Cinema do Parque (Recife).

No filme, Carlos Alberto Riccelli interpreta Hermes, o personagem equivalente ao padrinho de Reichenbach. A história começa nos dia atuais quando a publicitária bem sucedida, Ana Paula (Beth Goulart) vai recuperar a posse da casa de veraneio dos pais, no município que dá título ao filme. Ao chegar lá, lembra da última vez que esteve no local, em 1969, época do famigerado Ato Institucional Nº 5.

Por quatro dias, a jovem Ana Paula (Vanessa Goulart) e sua amiga Lydia (Luciana Brasil) – uma exímia pianista, filha de um temido militar – conviveram com a criada da casa, Teresa (Ingra Liberato) e Hermes, o misterioso tio de Ana. A tristeza de Hermes, homem maduro, sensível e fascinante aos olhos das três mulheres do enredo, representa o vértice para onde converge todos interesses.

Ao desmistificar o tio, e as razões de sua constante melancolia, Ana evolui sua maneira de perceber o mundo. A outra adolescente, Lydia, petulante e insolente, está em eterna competição com Hermes, que “vence” a petulância da jovem com a peculiar tranqüilidade daqueles que já conhecem a vida. Já Teresa, serena, gentil e paciente, é a que melhor consegue enxergar a agônia do personagem de Riccelli.

Ele sofre por duas perdas: pela esposa e seus dois filhos, que abdicou por conta das obrigações impostas pela luta armada; e pela irrefutável necessidade de abandonar seus ideais graças a indevida capacidade de empunhar armas na guerrilha e agir por meios violentos. Exilado de sua própria vida, e mesmo sabendo que não pode enviar correspondência para a família, ele coloca notícias em um papel, como se estivesse confessando-se para sim mesmo.

Reichenbach fez aqui seu filme mais intimista, e não esconde as referências de Dois Córregos com a filmografia do cineasta italiano Valerio Zurlino, de quem é admiriador. O ritmo impresso no filme de Reichenbach, que foi um dos alicerces do “Boca do Lixo” (que caracterizava os filmes de baixo orçamento criados de forma bastante experimentais e certo apelo popular na São Paulo dos anos 60/70), tem a mesma harmonia dos clássicos interpretados ao piano pela personagem de Luciana Brasil (que é, na realidade, arquiteta e pianista profissional).

Muito provavelmente, a música nunca teve tanta importância em uma produção brasileira. Como no primeiro filme da trilogia de Krzysztof Kieslowsky, A Liberdade É Azul, a música funciona como um outro personagem que aproxima (ou afasta) os protagonistas de sua mais soturna apreensão.

Apesar de um ou outro diálogo desapropriado (“por você, vou até o inferno!”) e certa cenas descabidas (como a seqüência do banho de chuva), Reichenbach compôs belos personagens vivendo num envolvente drama existencial que se sobrepõe à atmosfera história da ditadura.

Que o digam os dois mil espectadores suíços que aplaudiram, de pé, o cineasta brasileiro após assistirem a exibição de Dois Córregos no Festival de Locarno, em agosto do ano passado (1998).

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