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Críticas

O Cheiro do Ralo

Entre o mau cheiro do poder e o perfume da dignidade

Por Luiz Joaquim | 04.05.2007 (sexta-feira)

Não se pode dizer que “O Cheiro do Ralo” (Brasil,
2007), produção paulistana do realizador pernambucano
Heitor Dhalia, 37 anos, é uma comédia, embora venha
com ironia, sarcasmo e galhofa disfarçados de humor.
Não se pode dizer que é um drama, apesar de termos em
Lourenço (Selton Mello) uma figura solitária e
melancólica. Não se pode dizer que suscite um incômodo
psicológico, embora o protagonista trate as pessoas
com o mesmo desprezo com o qual acumula objetos
velhos.

Pode-se dizer, porém, que “O Cheiro do Ralo” é
audacioso, por trazer um recorte dramático abrangente,
e redondo, que se presta para criar analogias sobre
“tudo” e sobre “nada”. Pode-se dizer que é corajoso,
quando se sabe que o filme foi rodado com 330 mil
Reais e na base da camaradagem com os amigos, tudo
para transpor às telas a convicção de que a história
original – tirada do romance do quadrinisa Lourenço
Mutarelli (que aparece no filme como o segurança de
Mello), tinha algo de importante a dizer.

Pode-se dizer também que a obra não abre concessões à
simpatia do espectador no que diz respeito ao caráter
de seu protagonista ou quanto a sua proposta temática,
muito embora apele para estratégias “divertidas”
apoiadas no absurdo ou inusitado de alguns diálogos e
situações.

Apoia-se também num padrão visual pop que suscita
menos o desleixo e a sujeira de e para Lourenço e tudo
que lhe cerca (como o filme gostaria), e mais para um
aspecto asséptico, como se aquilo nunca estivesse
presente na vida, mas apenas no filme. Ao mesmo tempo,
as situações matematicamente calculadas na câmera, na
fotografia, na direção de arte e no figurino da
produção emprestam um automatismo frio às situações,
que à revelia do nobre esforço dos atores, funcionam
de forma interessante no campo da estética, mas quase
não dialogando no campo humano.

Os motes que impulsionam o filme são três, extraídas
diretamente da cabeça singular de Lourenço (o
personagem e o autor), e é para o encontro entre eles
que a história caminha até o final. Vemos então uma
bunda feminina, um olho de vidro e o ralo do banheiro
no escritório de Lourenço (ou o mau cheiro dele)
tomarem proporções de importância nunca vistos no
cinema. Como os três elementos não merecem crédito
para dar força a uma história que se apresenta, seria
ingênuo pensar que o que atraiu a cabeça de Mutarelli
e a de Dhalia seja a bunda, o olho ou a catinga de um
ralo no que há de concreto nessas coisas.

Daí, o que parece, apenas parece, é que se tem a
esperança aqui que a bunda, o olho e o ralo
(funcionando ao contrário) sirvam de símbolos para
todas as mazelas e benesses que se possa extrair dali,
inclusive um jogo aqui explícito sobre poder e
dignidade. Essa incapacidade de classificar o filme é
ponto a seu favor, dando várias leituras à cada novo
espectador.

Mas as fragilidades também estão lá. As perturbações
do Lourenço de Mello não promovem perturbações no
espectador, apenas uma curiosidade sobre a próxima
esquisitice que irá aprontar por ali. Se sua tara
fosse por mãos, ao invés de bundas de mulher, seria
menos interessante? E se o que lhe seduzisse fosse a
tampa de uma Coca-Cola e o que lhe incomodasse fosse
uma infiltração na parede (como já visto em diversos
filmes), o impacto seria menor? Talvez não. Teríamos
margem para outras centenas de leituras, mas é
provável que fosse menos divertido se dirigido por
Dhalia, no caso, claro, de a história com esse outro
apelo, ainda conseguir chamar a atenção do diretor.

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