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Entrevistas

Entrevista: Eduardo Coutinho (Moscou)

(Re)invenção do homem real

Por Luiz Joaquim | 11.08.2009 (terça-feira)

Quando começou a editar “Moscou”, Eduardo Coutinho se perguntou se podia ou não criar um filme a partir daquelas imagens, resultado de mais de 70 horas de material gravado. Aos 76 anos, respeitado pelos críticos, prezado pelos cinéfilos e fonte de estudo nas universidades, além de ter dirigido títulos incontornáveis na história (nem tão) recente do cinema brasileiro, como “Cabra marcado para morrer”, “Edifício Master” e “Jogo de cena”, o autor não se esquiva da autocrítica. Se não fosse resultado de dúvidas, questionamentos e reavaliações, provavelmente “Moscou” não seria um filme com imenso poder cênico (e cinematográfico) que a radicalização discursiva talvez esconda. Dentro de seu complexo jogo de ideias, fragmentadas e livres de um suposto conforto de pontuar a certeza, Coutinho redimensiona as colocações de “Jogo de cena” e registra (documenta?) a encenação do real, ou o que há de real na encenação, e na memória, concreta ou inventada. Diante da encruzilhada que se coloca a cada nova imagem, que encontra ecos em outras de filmes anteriores, ele não tem medo de duvidar e, talvez, de se reinventar. Em entrevista por telefone, o cineasta revelou detalhes a respeito da produção de “Moscou”.

De certa forma, seus filmes mais recentes, “Jogo de cena” e “Moscou”, evidenciam a ficção presente no documentário. Como foi a construção dessa ideia especificamente em “Moscou”? Essa aproximação entre os trabalhos foi algo previamente pensado?

Sim, foi. Com “Jogo de cena” fiz um filme que misturava realidade e encenação, e que de certa forma partia do documentário para chegar à ficção. Minha ideia com “Moscou” era trilhar o caminho oposto, queria ir da ficção de uma peça teatral para chegar a algo próximo ao que pode se dizer de “real”. Escolhi o Grupo Galpão, uma companhia teatral boa, e eles toparam encenar uma peça que nunca entraria em cartaz. Nenhum integrante do grupo sabia qual seria a peça. Apenas Enrique Diaz, diretor teatral que o próprio grupo escolheu, conhecia o trabalho a ser encenado. Optei por essa obra de Tchekhov por motivos pessoais, gosto muito dela, da dinâmica que ela possui, no sentido em que nada aparenta acontecer no palco.

No começo de “O fim e o Princípio”, você revela que não sabia onde o filme desembocaria. Essa liberdade narrativa, em que durante a filmagem não há a noção exata de qual seria o resultado final, também pontuou a produção de “Moscou” ou havia um controle sobre o material?

No caso de “O fim e o Princípio” eu não tinha controle nenhum. Comecei do zero. Por sorte, descobri a Rosa, que foi mediadora com as pessoas do local, já que conhecia quase todo mundo. Com “Moscou”, meu controle era apenas sobre a câmera, e nem mesmo esse controle era total. Escolhia onde a câmera ficava, mas minha interferência no conteúdo das cenas era muito pequena. Queria que essas sequências representassem os métodos teatrais estabelecidos pelo Enrique. Por isso, achei melhor interferir o mínimo e documentar a aproximação dos atores à peça de Tchekhov a partir dos métodos que ele escolhesse. Minha grande tarefa foi escolher onde colocar a câmera. Não sabia para onde os atores iriam se movimentar, e essa imprevisibilidade tem a ver com uma ideia de documentário, no sentido que você nunca sabe o que vai acontecer.

Houve algum direcionamento dado aos cinegrafistas ou eles estavam livres para registrar os fragmentos da peça?

Quando havia ensaio, eu orientava onde deveriam ficar as câmeras. Em outras cenas, os cinegrafistas deveriam tomar decisões, às vezes muito rápidas, porque havia muita improvisação dos atores. Às vezes eu os acompanhava, explicava qual deveria ser o enquadramento, ao menos no que podia ser previsto. Ou então acompanhava via monitor e rádio, dando instruções. Mas em outros momentos não tinha como, a improvisação no palco era muito ágil e os cinegrafistas tinham que se virar e acompanhar de alguma forma.

Você já disse em entrevistas que “Moscou” lhe fez questionar se continuaria a fazer cinema. Por que esse filme lhe afetou tanto a ponto de pensar isso?

Porque o momento de edição foi muito estressante. Peguei um material com mais de 70 horas, e me perguntava qual seria o caminho a seguir, se havia um filme ali. Nesse sentido, o João Moreira Salles, que atuou como produtor, foi essencial. Ele argumentou que seria melhor concentrar a discussão em torno da questão do improviso, do contato entre o texto de Tchekhov com o ensaio dos atores. E não ficar preso na preocupação de contar a história das três irmãs. Com isso, decidimos que seria melhor jogar apenas com os fragmentos. São 33 fragmentos da peça que compõem o filme.

O primeiro corte do filme tinha 4h40 de duração. Já a versão que vimos no cinema possui 78 minutos. O que guiou a escolha do material que entrou e que foi cortado?

Cortei tudo o que tinha a ver com aquele tipo de conversa, como “vai acabar amanhã”, ou “esse exercício vai ficar bom”, ou ainda “o texto de Tchekhov é ótimo”. Essas coisas têm mais a ver com uma espécie demaking of, algo que não gosto. Outra parte do material cortado foi baseada em termos de sensibilidade, algo pensado e refletido, sim, mas ainda assim sensível. No fundo, achei que iria funcionar melhor de determinado jeito, narrar através da sugestão a partir de fragmentos da peça, sem ser muito óbvio e mexendo na linha temporal, de forma que as cenas dialogassem. Essa montagem foi pensada para causar um mínimo de desorientação no público, que segue por uma viagem, talvez mais difícil que outras, sem saber exatamente onde vai dar, mas que aos poucos vai entendendo.

O que você pensa a respeito do nome “Moscou” para a dinâmica do filme, no sentido de ser uma cidade que faz parte do passado e dos sonhos futuros dos personagens?

O filme não tinha nome. No processo de montagem, percebemos que Moscou era a grande cidade da obra de Tchekhov, um local concreto que os personagens idealizavam e projetavam lembranças da infância. Era um lugar para onde eles queriam voltar, ou chegar, de alguma forma, a partir do passado, ou das lembranças pessoais. A cena que abre o filme, por exemplo, é a de um homem que segura uma fotografia e fala de um cinema que foi demolido em Moscou. Só que a foto que ele segura nas mãos não é Moscou, mas uma cidade de Minas. Se a imagem é Minas Gerais, e não Moscou, o falso e o real não têm mais importância, e o que passa a contar são apenas as memórias.

Há um sentimento forte de impossibilidade no filme. A peça que já nasce consciente que não será completada. Além da própria Moscou, que é ao mesmo tempo uma lembrança distante e um sonho impossível. Saí da sessão com uma sensação de melancolia. Como você recebe as leituras diferentes a respeito do seu trabalho?

Melancolia, sério? Interessante, porque Tchekhov é conhecido como poeta da melancolia. Acho isso positivo, assim como também seria positivo uma imensa alegria. Toda reação é possível. Cada um sente de um jeito. Desde que a pessoa ache alguma coisa que lhe interesse, para o bem ou para o mal, a gente nunca prevê, com precisão, ao menos. Acho isso ótimo, uma leitura pessoal, poética, didática, de esquerda, de direita, não importa que tipo, desde que seja sincera.

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