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Críticas

Bem-vindo a Nova York

Sem sentimento de culpa

Por Luiz Joaquim | 10.09.2014 (quarta-feira)

Alguns devem lembrar. Em maio de 2011 o ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), o francês Dominique Strauss-Kahn, foi acusado de ter sexualmente abusado de uma camareira num hotel em Nova Iorque. Dias depois, o executivo pediu demissão e o escândalo implicou também em seu divórcio e no desmoronamento de seus planos para se candidatar a presidência da França. O suposto bastidor dessa história alimentou a cabeça do enfant terrible Abel Ferrara, cineasta novaiorquino para fazer “Bem-Vindo a Nova Iorque” (Welcome to New York, EUA, 2014), que estreia amanhã no Cine Rosa e Silva.

Ferrara, 63 anos. é o melhor que um autêntico outsider da indústria norte-americana poderia nos oferecer. Com seus filmes, entendemos melhor o universo urbano sujo e decadente de sua Nova Iorque, sempre circundando suas histórias. São histórias recheadas com mulheres sem roupa compondo. Talvez, para alguns, seja heresia dizer que Ferrara seria um Martin Scorsese sem polimento e de educação estética própria, mas é possivelmente a melhor maneira de traduzir, aos leigos, qual é o estilo deste cineasta nascido e criado no Bronx. Haja visto alguns de seus títulos como “Vício Frenético” e “Olhos de Serpente” (ambos com Harvey Keitel), “O Rei de Nova Iorque” e “Os Chefões” (ambos com Christopher Walken).

Para “Bem-Vindo a Nova Iorque”, Ferrara não poderia ter escolhido melhor figura que a Depardieu, em função do corpozão gordo que, como bom ator, não se incomoda em expô-lo em sua totalidade. “Não o conhecia. Mas não houve dificuldade. Mandei o roteiro para ele, e quando nos encontramos na primeira reunião já tínhamos um acordo”, disse o diretor ao CinemaEscrito em entrevista quando esteve em julho em Paulínia, lançando o filme dentro da mostra de 25 anos da distribuidora Imovision. (Leia entrevista abaixo).

Beira ao constrangimento a posição que Ferrara coloca seu espectador diante dos primeiro 20 minutos do filme, quando nos faz observar a festinha particular que o Sr. Deveraux (Depardieu) organiza em sua passagem pela Big Apple. Cercado de várias prostitutas, ao lado de outros amigos, um dos homens mais poderosos do mundo o Sr. Deveraux nos aparece como uma pessoa descontrolado numa orgia digna do nome.

Ainda mais inquietante, a cena que deverá deixar espectadores inquietos na poltrona é a que registra friamente o abuso sexual contra a camareira. Ferrara não inventa com sua câmera. Deixa-a quieta, para gravar as imagens quase sem cortes, como se registra um acontecimento em tempo real; no qual a imagem que se desenrola a sua frente é mais eloquente e incômoda do que qualquer desvairo fotográfico. É nessa hora que entendemos o talento de um ator como Depardieu. Necessariamente frio.

Ao estourar o escândalo, entra em cena a esposa Simone (Jaqueline Bisset, que também esteve em Paulínia), a alma e a mente por trás do Sr.Deveraux. Nesse ponto, os diálogos – livres para improvisação entre os dois atores – com Simone tentando pôr na cabeça do marido a dimensão de seu feito, nos dão uma pista de como pode funcionar a lógica de um homem que nunca busca a redenção. E ninguém melhor que Abel Ferrara para desenhar este rascunho.

ENTREVISTA: Abel Ferrara/Jaqueline Bisset
“O roteiro é apenas um ponto de partida”

Abel Ferrara e Jacqueline Bisset em Paulínia

Na entrevista concedida a imprensa no 6º Festival de Paulínia, Abel Ferrara iniciou logo dizendo que havia falado a outro jornalista que a atriz Jacqueline Bisset havia dormido com Gérard Depardieu. Sentada ao seu lado, sem perder a elegância, a atriz de “A Noite Americana” olhou para o cineasta e soltou um “Não! Oh, Deus!”, seguido de um sorriso.

“Na verdade, no passado namorei um homem muito parecido fisicamente com ele. Isso de certa forma me ajudou a pensar como seria Deveraux. Mas fazia tempo que não via Depardieu e mesmo e foi bom reencontrá-lo tão diferente fisicamente”, segredou Bisset.

A descontração entre a atriz e o cineasta durante a entrevista deu uma ideia do quanto todos estiveram livres no set de filmagens para improvisar. “Aprendi algo muito sério com Harvey Keitel [ator que dirigiu em seus filmes, como “Vício Frenético” e “Olhos de Serpente”]”, reveleou Ferrara. “Aprendi que o roteiro é apenas um caminho. Keitel decide nos ensaios o que é mais importante façar. Hoje quando um ator me pergunta sobre o roteiro quando vamos filmar, eu digo a ele: f***-se o roteiro”, explicou, com seu habitual sotaque da região novaiorquina do Bronx.

“Para mim”, pondera Bisset sobre a reação de sua personagem ao escândalo, “Simone realmente ama Deveraux, mas a provação a que ele a submete é muito grande. E ela faz o que acha que uma esposa deve fazer. Ficar ao seu lado”.

Sobre a ausência de culpa do protagonista, Ferrara conta que “Bem-vindo a Nova Iorque olha para personagens que vão do ponto A para o ponto A, sem buscar redenção”, algo próprio em seus filmes.

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