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Viagem aos seios de Duília

Um texto (mais pessoal) sobre um filme precioso e esquecido.

Por Luiz Joaquim | 20.07.2017 (quinta-feira)

Há dez anos, em maio de 2007, assisti pela tevê, no canal pago CineBrasilTV, durante a madrugada num solitário quarto de hotel em João Pessoa – onde lá estava para cobrir a 3º edição do Cineport: Festival de Cinema de Língua Portuguesa – a um filme chamado Viagem aos seios de Duília (Bra., 1964).

Ao final do filme, eu estava transformado.

Antes de prosseguir, é prudente deixar claro que este será um texto mais pessoal (observem os verbos na 1ª Pessoa) do que analítico. Ainda que traga reflexões críticas sobre o filme que vocês conhecerão aqui. Será algo próximo como fiz ao escrever (naquele mesmo 2007) sobre um símbolo cinematográfico da minha infância: Ulysses (1955), de Mario Camerini.

Viagem aos seios de Duília, do subestimado diretor argentino Carlos Hugo Christensen (1914-1999), transformou-se, para este que escreve, numa espécie de símbolo do melhor que o cinema brasileiro, ao longo de toda sua história, poderia produzir no que diz respeito a aspectos existenciais. Mas esta já é uma observação técnica, por assim dizer, e este é um ponto pelo qual não quero me embrenhar, por enquanto.

Por uma espécie de respeito (reverência, é uma melhor palavra) pela beleza estética e profundidade temática para a qual o filme de Christensen me sugou, nunca me atrevi a escrever a respeito. Este, talvez, seja o mais alto indício do meu cuidado para com a obra se levarmos em conta que a essência da minha profissão, há duas décadas, é produzir reflexão sobre e a partir de filmes.

Então, por que você nunca escreveu sobre este filme que lhe é tão valioso? O leitor perguntaria. Porque algumas poucas obras te atingem, por razões infinitas, de forma devastadora. E elas são realmente raras, a ponto de as enumerarmos nos dedos de uma única mão.

De uma maneira quase infantil, diria, sempre acreditei que nunca daria conta de construir um texto que chegasse próximo da dimensão incisiva como a melancolia e o desespero de uma alma solitária tão bem construída são apresentadas por Christensen aqui neste filme, feito a partir de um conto homônimo do escritor mineiro Anibal Machado (1894-1964).

Machado, infelizmente, não viveu o suficiente (faleceu em janeiro) para ver a estreia (no final do segundo semestre de 1964) da adaptação de seu conto para o cinema, roteirizado por ninguém menos que Orígenes Lessa.

E por que você, autor, resolveu agora escrever sobre Viagem aos seios de Duília? Acredita que está já apto a chegar à altura do filme com seu texto? Não. Escrevo por uma permissividade que ofereci a mim mesmo. Por ter hoje menor receio de que venha a lamentar pela eventual fragilidade com a qual este texto possa ser composto. Mas, também, como um agradecimento a Christensen, deixando registrada aqui a experiência única e rica que sua obra me proporcionou.

No caso, o protagonista de Christensen é o servidor público recém-aposentado José Maria (o gigante Rodolfo Mayer, aqui assombroso). Ainda com os créditos iniciais, e assim seguindo ao longo dos dez primeiros minutos do filme, Christensen, sem nenhum diálogo, resume a vida de Zé Maria com uma economia e eficácia cinematográfica intrigante.

O que vemos é o cotidiano trivial e burocrático do servidor em seus últimos dias na repartição do Ministério, recebendo a despedida amorosa de seus subordinados ao bater das 17 horas do expediente no derradeiro dia de trabalho, e seu subsequente início de aposentadoria. Não há diálogos até aí, repito, o que de imediato deixa o espectador mais e mais curioso para onde o filme irá nos levar.

Zé Maria é um senhor tímido, delicado e generoso. Devotou 36 anos de sua vida ao Ministério. Além do carinho de seus colegas, como mérito por empenhar mais da metade de sua vida ao Governo Federal, herda daí um telegrama de congratulações do ministro e mais um guarda-chuva comprado por seus subordinados.

Não se casou. Não teve filhos. Não tem parentes. Sua única companhia é a secretária, que lhe dedica cuidados domésticos há 20 anos.

Zé Maria é, enfim, alguém desimportante fora de seu âmbito profissional, cujo ciclo encerrou. É como milhões de pessoas no mundo, mas, em seu caso, o que lhe restou foi o nada.

Alimentando uma silenciosa afeição por Délia (Nathália Timberg, aos 34 anos), uma de suas subordinadas na repartição, nosso herói, mesmo aposentando, ainda cultiva a esperança de ter seu sentimento reconhecido e retribuído por Délia. Repetindo, Délia, não Duília.

Após uma decepção com Délia – e, pela maneira como a descobre, reforçava ainda mais sua ingenuidade diante do mundo real –, Zé Maria acaba por relembrar durante o funeral de um colega como ele, Zé Maria, foi feliz na mocidade quando viveu em sua terra natal, Pouso Triste (que nome!), no interior mineiro, de onde saiu há 40 anos.

Sem nada para si no presente, sem nenhuma vida a lhe esperar no futuro, o protagonista acorda no dia seguinte decidido a voltar ao passado. Quer reencontrar a felicidade da meninice e, particularmente, seu primeiro e único amor, Duília (Lícia Magno, idosa, e Lila Palácios, jovem).

Christensen faz dessa longa e lindamente fotografada (por Aníbal Gonzalez Paz) jornada de trem, ônibus e no lombo de um cavalo algo próximo ao que Ingmar Bergman fez com seu professor em Morangos silvestres (1957). Faz com que o trajeto e a natureza reavivam na memória de Zé Maria aquilo que lhe foi realmente fundamental na vida, ao mesmo tempo em que o ilude sobre o que está para encontrar em Pouso Triste.

E o que ele encontra é o nada. Não reduza isto a ausência de Duília, porque ela está lá. Mas não a Duília dos sonhos de Zé Maria. Desse novo encontro dos outrora apaixonados e hoje completo desconhecidos – separados por quatro décadas sem nenhum contato – Viagem aos seios de Duília nos diz o óbvio, numa agudíssima construção lúgubre, com a luz, os atores, o texto e a música melancólica de Lírio Panicalli construindo uma encenação dura.

Nos diz que Zé Maria viveu em vão.

Ele finalmente entende isso e, apenas pelo rosto contraído e em agonia de Rodolfo Mayer sob a luz correta, nós também.

Este triste arco que o filme de Christensen encerra tão exemplarmente explicita numa dramaturgia e plasticidade sombria e quase insuportável o vazio que todo homem busca preencher quando, ao longo da vida, elabora razões para a sua existência.

Explicita o vazio.

Viagem aos seios de Duília, portanto, nos fala do vazio. E para colocá-lo em evidência, precisa do concreto. Para tanto, agarra-se a um momento fugidio de uma vida inteira de Zé Maria para tentar explicar que a existência pode até nos proporcionar o encontro com um real sentido em si, mas também pode lhe tirar esse sentido.

E se assim for…

 

Em tempo: Em 2007, Viagem aos seios de Duília era um filme raro de se ver. O acesso público era apenas pelo canal CineBrasilTV. Hoje, para vê-lo, basta clicar no triângulo horizontal ao centro da imagem abaixo.

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