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Festivais

50. Brasília (2017) – noite 9

“Arabia”: a nova – e calma – inconfidência mineira.

Por Luiz Joaquim | 24.09.2017 (domingo)

BRASILIA – Última noite competitiva (sábado, 23) no 50o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e uma alegria, acompanhada de uma certeza, parece ter arrebatado toda plateia do Cine Brasília. A alegria era a beleza que Affonso Uchoa e João Dumans nos entregava na forma do longa-metragem chamado Arábia; e a certeza era a de que o festival estava, indubitavelmente, nos oferecendo ali o seu melhor filme desta edição.

Já resumido por alguém como um road-movie sobre um trabalhador, Arábia nasceu ontem no Brasil sob a benção do Festival de Roterdã, onde teve sua premiere mundial no início do ano.

Tendo como ponto de partida (ou de chegada, o espectador decide), a Vila Operária, um bairro vizinho de uma velha fábrica de Ouro Preto (MG), conhecemos uma família formada por uma tia e dois sobrinhos que socorrem Cristiano (Aristides de Souza) um operário acidentado.

Tal apresentação serve apenas como um prelúdio para uma parábola que o jovem André vai acessar a partir de um caderno de memórias escrito por Cristiano.

Pelos escritos do caderno, Arábia deixa a vida de André e de sua família para trás e dedica-se a partir dali, e inteiramente, à narrativa que Cristiano registrou no diário por sugestão do grupo de teatro da fábrica do qual resolveu participar.

Por um discurso tímido, quase envergonhado da própria escrita (o que o espectador vai ouvindo pela voz em off de Cristiano), vamos conhecendo a trajetória daquele homem simples que só decidiu pô-la num papel por, depois de refletir, entender que havia pelo menos uma coisa em sua vida que valia a pena compartilhar. Esse algo era o seu encontro com Ana (Renata Cabral).

A partir desse dado, que facilmente nos dá a expectativa de mais um tradicional filme de amor, somos na verdade colocados numa trajetória mais complexa ao longo do filme. É uma trajetória carregada de dificuldades, sacrifícios e injustiças, mas também de belos encontros e repleto de novas amizades, alem de outras interrompidas.

Essa trajetória e a experiência por ela vivida pelo protagonista terminam por torna-se tão ou mais importante quanto o, digamos, ponto em que Cristiano encontra a mulher que, pelas suas palavras, “mudou minha vida para sempre”.

O que parece obvio – afinal, porque nos preocupar apenas com o final de um filme se temos de conviver e aprender com ele pelos seu 90 minutos inteiros de duração? – mostra-se em Arábia como uma grande lição destes dois grandes autores que confirmam ser Uchoa e Durans.

Pelos perrengues que Cristiano passa no filme e as lições que ele (e nós) vamos assimilando ao longo de seu caminho, acessamos alguns dilemas sociais e de opção de vida que, em menor ou maior grau, afetam a qualquer pessoa; particularmente no Brasil de 2017 com seus 14 milhões de desempregados.

Aristides de Souza como Cristiano em “Arabia”

A falta de perspectiva profissional, ou a insatisfação profissional, ou ainda o preconceito como impeditivo na conquista de um emprego são temas que perseguem o protagonista.

Como se não bastasse sua limitada formação, Cristiano também é marcado pelo estigma de ser um ex-presidiário que passou pouco mais de um ano encarcerado pelo delito de, quando mais jovem, ter roubado um carro.

Entre os diversos empregos que experimentou – desde o primeiro, colhendo mexerica no campo, até chegar à fábrica da Vila Operária – Cristiano pode ser lido como a mais desvalida mão-de-obra do País, que opera na base da fundação de qualquer nação (o campo e a indústria, entre outros), aqui de maneira desprestigiada.

Num dia qualquer de trabalho na fábrica, uma experiência extraordinária (e explorada com inteligência pelo som do filme) estimula um insight em Cristiano sobre a condição de sua vida. O que o faz refletir a respeito do que o levou até ali e porque ali permanecer se ele descobre-se não pertencente àquele lugar.

Em meio a tanta aridez nessa trajetória de sacrifícios e descobertas, Arábia também nos dá a beleza da amizade. É nos intervalos do trabalho de Cristiano que ela opera entre os iguais. Há ainda que registrar o condimento mineiro nestes pontos do filme.

Para entender tal condimento, é só prestar atenção na conversa entre Cristiano e seu patrão sobre que produto é bom ou ruim de carregar num serviço de carga e descarga de produtos pesados. Ou na prosa sobre a safra de mexerica e da importância de um trabalhador mais velho para que a colheita dali fosse o sucesso que é.

Parecem infinitos os campos de acesso que Arábia pode proporcionar ao espectador, e tudo apresentado com uma serenidade e ternura incomum no cinema brasileiro contemporâneo (o qual a crítica insiste em aplicar uma já cansada ideia de “afeto” para resumi-la).

É pela característica de tentar revolucionar pela calma que o cinema mineiro parece se destacar com a habilidade de poucos. Funcionando quase como uma inconfidência tranqüila contra a habitual urgência da violência para encontrar soluções imediatas, Arábia nos acena como algo refrescante e bom. Sendo sua capacidade tão transformadora – ou até maior? – quanto aquelas outras obras que urram e exigem pela força uma revolução social.

Dumans também roteirizou A cidade onde envelheço, que foi o filme vencedor de Brasília em 2016. É a calma inconfidência mineira querendo transformar o homem, e o Brasil.

Prestemos atenção, por favor.

*o jornalista viajou a convite do Festival.

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