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Festivais

55º Brasília (2022) – “A Invenção do Outro”

Um filme que modifica nossa apreensão sobre ele a partir do assassinato do indigenista Bruno Pereira

Por Humberto Silva | 21.11.2022 (segunda-feira)

Um dos temas presentes que dominou essa 55ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro é o que envolve a questão indígena. Na mostra competitiva de curta-metragem foi exibido Um tempo para mim, de Paola Mallmann; na Mostra Paralela Reexistências Uýra – a retomada da floresta, de Juliana Curi; na Mostra Brasília Levante pela terra, de Cuhexê Kraô; na homenagem a Jorge Bodanzky, Amazônia, a nova Minamata? Esse um dado que indica a preocupação das comissões de seleção com um assunto que mobilizou muitos dos debates políticos no Brasil nos anos Bolsonaro. E, como uma espécie de cereja do bolo, a Mostra Competitiva Longa-Metragem se encerra com A invenção do outro, de Bruno Jorge.

O personagem de destaque em A invenção do outro é o indigenista Bruno Pereira, assassinado junto com o jornalista britânico Dom Phillips, no extremo oeste da Amazônia no último mês de junho. Bruno Jorge, em entrevista ao Correio Braziliense, disse que a idealização do filme resultou de um convite do próprio indigenista, que o convidou para acompanhar uma expedição realizada pela Funai em 2019. As imagens da expedição foram colhidas quando a Funai buscou entrar em contato com um grupo de indígenas da etnia Korubos, que estava vivendo em condições de vulnerabilidade.

Bruno Pereira segue Xuxu, korubo que teve parte dos seus assassinados em conflito com os Matis, uma tribo rival que também vive na floresta amazônica. Como consequência do conflito com os Matis, houve uma dispersão dos Korubos. O papel da expedição foi o de propiciar o reencontro de Xuxu com seu grupo de origem, liderado por seu irmão mais velho Makwex, que está isolado no meio da floresta. Estas informações visam a contextualizar as condições de realização do filme. Tendo presente que as filmagens têm em vista em registro documental etnográfico. Por óbvio, essas imagens ganham outro sentido com o destino trágico de Bruno Pereira três anos depois.

Na realização de Invenção do outro, Bruno Jorge segue alguns dos princípios do documentário observacional, conforme a tipologia de Bill Nichols. Não há intervenção da equipe de produção, tampouco controle das imagens colhidas. Com isso, a se imaginar a enorme dificuldade para se filmar em condições difíceis, sob perigo constante, numa floresta hostil à presença humana. Bruno Jorge, a esse respeito, consegue realizar uma proeza épica, que mereceria toda a atenção, mesmo que não fosse surpreendida pela tragédia com a morte de Bruno Pereira. E isso, a tragédia, dá a dimensão do trabalho de Bruno Jorge, cujo filme seria visto tão só como registro etnográfico das condições de vulnerabilidade de povos isolados que vivem na floresta.

Chamo a atenção aqui para um ponto para mim importante. O quanto a perspectiva de recepção de um filme se modifica conforme as condições de sua realização, ou de eventos posteriores que afetam o olhar do espectador. As imagens de A invenção do outro teriam um sentido diferente não houvesse a trágica morte de Bruno Pereira. Isso não significa que o filme, do ponto de vista visual, se modifica, mas sim que se modifica nossa apreensão sobre ele. Algo similar, mas às avessas, pode ser dito do ensaio fotográfico de Leni Riefenstahl com a tribo Nuba no Sudão. Não há como desvincular o olhar para as imagens nas fotos de Riefenstahl quando se tem na lembrança sua adesão ao nazismo.

A edição final de A invenção do outro, foram sessenta horas de filmagens, inegavelmente se ressentem do que aconteceu com Bruno Pereira. Quer dizer, há um dado passional que não se pode perder de vista. Mas, justamente, nesse dado passional, muito de como os condicionantes de filmagens não podem ser abstraídos quando estamos diante de uma obra. E isso tanto quanto uma obra traz à tona que nosso olhar muitas vezes pode não ser tão sensível se algo de dimensão trágica não nos alerte para um problema. No caso, não nos esqueçamos, a etnia Korubos é uma entre outras provavelmente perdidas no meio da floresta.

En passant, recomendaria ver A invenção do outro ao lado de Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci. Da mesma forma que Tonacci, Bruno Jorge realiza uma obra fundamental para termos presente a realidade de existência de grupos indígenas que vagam perdidos no Brasil profundo.

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