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Críticas

Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi

Sonhos marrons na enlameada Mississipi.

Por Luiz Joaquim | 15.02.2018 (quinta-feira)

Afrodescendentes. Mississipi. É incrível como apenas duas palavras sequenciadas possuem a capacidade de abrir um leque bem largo a respeito de aspectos sérios e muito, muito tenso. Já no início de Mudbound: Lágrimas sobre o Mississipi (EUA, 2018), da iniciante diretora Dee Rees, o filme deixa claro que não haverá momentos de relaxamento ali.

Estamos em 1946 no Delta do Mississipi – região norte-americana vizinha ali do Tennessee, onde nasceu a Klu Klux Klan – e Mudbound abre com dois irmãos brancos tentando enterrar o corpo do velho pai. Sem condições de baixar o caixão na cova, o mais velho, Henry (Jason Clarck, de O planeta dos macacos: o confronto), pede a ajuda da família Jackson. Estes são negros que passam por ali numa carroça. É o suficiente para estabelecer a tensão que seguirá crescente até o final.

Baseado no livro homônimo de Hilary Jordan, Dee Rees (também roteirista aqui, com Virgil Williams) decide que esta história, até aquele ponto, deverá voltar para 1939 quando Henry desposa uma virgem de 31 anos, Laura (Carrey Mulligan). O interessante é que a perspectiva, em boa parte do filme, será massivamente a de Laura e da Sra. Florence Jackson (Mary J. Blige) com a de seu marido Hap (Rob Morgan) por meio de narrações em off sobre o universo que as cerca.

No caso de Laura, ela assume aos espectadores que casou com Henry apoiada mais numa conveniência do que por amor. E que logo “satisfazia-se em servir ao marido quando chegava do trabalho, e depois dedicando-se inteiramente às filhas”.

Já no off do empregado da fazenda de algodão – Hap – e da sua esposa Florence a fala é a do lamento para quem escrituras de terras não valem nada, ainda que um dia elas comprovassem que as terras em que trabalharam por toda vida, e seus pais, e seus avós e seus bisavós, pertenciam a eles.

Passam-se dois anos, Pear Harbor é atacada pelos japoneses e os EUA entram na 2ª Guerra Mundial. Para lutar pelos EUA partem do Delta do Mississipi, como capitão e sargento, respectivamente, o irmão de Henry (Garret Hedlund, de Tron: O legado) e o primogênito de Hap e Florence, Ronsel (Jason Mitchel, de Kong: A ilha da caveira).

A guerra os transforma, como é de se esperar, durante os quatro anos em que passam nos campos de batalha. Mas nada muda entre os aspectos racistas da região do Delta. E são estes os conflitos que interessam ao filme. Um planeta em transformação, cuja mudanças foram testemunhadas por duas pessoas simples do interior e que no retorno à sua terra retrógrada não mais ali se encaixam. Mas, em duas condições distintas: um branco, proprietária de terras, e o filho negro de um empregado destas terras.

 

O que talvez mais chame a atenção aqui sejam: a) a ideia clara de movimento, de mudança, ainda que muito lenta, sob a perspectiva dos direitos dos afrodescendentes, e b) a percepção da mulher que ela também tem o poder de reivindicar seus direitos. São sobre esses dois pontos que Mudbound bate bem, e com equilibrada sutileza.

Para o caso b) há duas cenas definidoras: quando Laura levanta a voz para o marido exigindo que o sogro Pappy (Jonathan Banks, ótimo) não passe a dormir na casa da família quando se mudam para a fazenda. E quando Florence convence seu marido, de maneira carinhosa, a permiti-la trabalhar como empregada doméstica.

Já para o caso a) essa transição de cultura parece clara nos três personagens masculinos brancos. O patriarca Pappy é um raivoso e violento racista. Seu filho mais velho, Henry, é igualmente racista, mas moderado e consciente do tempo em que vive. E o caçula Jamie, que conheceu a estupidez da guerra, já percebe o quanto há de sem sentido na ideia do racismo.

No mais, Mudbound segue num ritmo particular em seus aspectos técnicos de maneira envolvente – mas algumas vezes com um certo excesso –, em particular na fotografia de Rachel Morrison, que remete às antigas pinturas de campos de algodão no Delta sob os cuidados de escravos. É a chamada Mississipi enlameada, de onde os afro-americanos não costumam ter boas lembranças.

O filme de Dee Rees concorre, dia 4/3, a quatro Oscars: atriz coadjuvante (Mary J. Bligs), roteiro adaptado, fotografia e canção original.

 

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