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Uma análise sobre a criação audiovisual

Documentarista e pesquisador Marcos Santos avalia a fruição a partir do processo criativo de uma obra.

Por Marcos Santos | 22.04.2018 (domingo)

Estudar o processo de criação de uma obra não significa fazer um retorno ao instante criador, uma vez que este momento é demasiadamente único e intimista e seria impossível compreender o que se passa na cabeça do autor da obra, ou acessar o momento em que o artista cria. Trata-se, portanto, de refazer os caminhos percorridos pelo artista no decorrer da construção da obra, a fim de melhor compreender as suas escolhas, decisões e como se deu o seu processo de criação.

Tal estudo é viável tanto sob a perspectiva da crítica genética e dos estudos da crítica de processo, quanto pela análise acerca da intencionalidade do realizador – estudo esse desenvolvido pelo historiador da arte Michaell Baxandall, em sua obra Padrões de intenção A explicação histórica dos quadros (2006).

Contudo, antes de tecermos quaisquer considerações acerca do processo de criação segundo os autores citados, se faz importante abordarmos, ainda que de uma forma sucinta, algumas questões sobre o que seria o ato de criação, o processo de elaboração de uma obra e o surgimento das ideias.

A fim de evitar conceitualizações acerca do ato de criação que apontem para a genialidade do artista, ou para a inspiração, fazemos questão de frisar que uma ideia não surge do nada, ou simplesmente é fruto de uma inspiração divina. “Ter uma ideia não é algo genérico. Não temos uma ideia em geral. Uma ideia, assim como aquele que tem a ideia, já está destinada a este ou àquele domínio” (Deleuze, 1986[1]). Nessa perspectiva, o que o autor nos diz é que a ideia não surge do nada e não é em geral, ela comumente é canalizada para alguma área. Dificilmente estaremos pensando em matemática e teremos uma ideia em cinema, assim como o criador, para ter uma ideia, necessariamente deve estar trabalhando em função de resolver uma determinada problemática.

Segundo Baxandall (2006), a obra de arte é a solução de certo problema que o artista designou-se a resolver, como, por exemplo, construir uma ponte, pintar um quadro ou realizar um filme. Isso posto, podemos dizer que o criador não trabalha ou cria pelo prazer; o autor de uma obra a realiza porque tem a estrita necessidade da criação. Dessa forma, podemos dizer que a ideia surge quase que como uma resposta a um problema, é uma necessidade para o criador e aparece, muitas vezes, independente de sua vontade. Assim sendo, concordamos com Deleuze que a criação é uma necessidade do artista.

É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema. (DELEUZE, 1999, p.3).

Ainda em relação à questão da criação, no que diz respeito ao surgimento da ideia, Deleuze irá dizer que a criação ou a ideia ocorre em blocos. Assim como a filosofia trabalha com blocos de conceitos – pois seria essa a sua realização, a de inventar conceitos –, a ideia no cinema surgiria a partir dos blocos de movimento/duração. Esses blocos, por sua vez, serão os elementos que interagem dentro da linguagem cinematográfica.

Podemos dizer, então, que as criações ocorrem dentro destes blocos. A inventividade do pintor, porém, será distinta tanto da do filósofo, quanto da do cineasta. O primeiro irá compor em blocos de cores e linhas, já o artista plástico e o cineasta irão, cada um, inventar outros tipos de blocos adequados às suas necessidades. Assim, a ciência não seria menos inventiva que a arte.

Queremos dizer que a inventividade e o processo de criação das diferentes ciências e artes trilham os seus caminhos específicos, mediante as suas necessidades. Não estamos afirmando que o processo cognitivo seja distinto, uma vez que essa processualidade é canalizada para um tipo específico de criação. Dessa maneira, não há tanta oposição entre o processo de inventividade das artes e da ciência.

Ainda dentro do que se refere à criação, sabemos que ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa de tê-la em outro assunto. No entanto, podemos perceber que existem certos pensamentos que parecem convergir para um ponto em comum e poderiam ser adaptados para outras formas de expressão artísticas. Por exemplo, uma criação literária que converge para uma ideia cinematográfica. Estamos diante, nesse caso, do que poderia ser tido como uma possível adaptação. É claro que estamos cientes das questões que envolvem as diferentes linguagens da literatura e do cinema, contudo essa possibilidade tanto é plausível, quanto serve de inspiração dentro do processo de criação de uma obra.

Tomaremos aqui o caso de uma das fontes de inspiração para a criação do filme Tatuagem, do diretor e roteirista Hilton Lacerda. O realizador do filme tornou público, em entrevista, que sempre teve vontade de realizar algum trabalho que envolvesse o grupo Vivencial Diversiones[2] e o escritor e realizador Jomard Muniz de Britto[3]. A ideia inicial tratava de um documentário, intitulado O homem da ponte, que envolvia os dois temas citados. No entanto, em conversas com amigos, principalmente com o escritor João Silvério Trevisan, Hilton Lacerda decidiu que deveria realizar um outro trabalho sobre o Vivencial Diversionesnão um documentário, mas um filme ficcional onde teria maior liberdade poética em sua criação.

Dentre os vários materiais que iriam servir de inspiração para o filme estavam os filmes do Movimento Super 8 pernambucano realizados por Jomard Muniz de Britto – principalmente os que tinham o Vivencial Diversiones como pano de fundo –, além de filmes da segunda geração do Cinema Novo, como A Lira do delírio (1978), de Walter Lima Júnior. Entram também nessa lista o livro Orgia – Os diários de Túlio Carella, Recife 1960 (1968), de Túlio Carella, e as obras Em nome do desejo (1983) e Devassos no Paraíso (1986), de João Silvério Trevisan.

O que queremos salientar, aqui, é que muitos dos materiais que serviram de inspiração para as ideias de Hilton Lacerda surgiram de blocos de criação diferentes dos blocos de criação cinematográfico, mas que, apesar disso, eles ecoaram no pensamento do diretor. Isso foi o que o levou a tomá-los como inspirações e o que leva, em outros casos, um cineasta a querer adaptar uma obra. Esmiuçar tais paradigmas é realizar uma viagem através do processo de criação de uma obra. E para que serve o estudo do processo de criação de uma obra?

Estudar o processo de criação de filme poderá nos permitir adentrar não apenas no pensamento do realizador, mas conhecer etapas de sua realização, que podem ir desde a sua idealização e construção do roteiro, passando por sua produção no set e o posterior processo de edição. Quais as inspirações para que uma história, como no caso fosse contada? Como podemos localizar a obra e as escolhas de realização dentro de uma conjuntura espaço-temporal do cinema pernambucano que vem sendo desenvolvido na contemporaneidade, e fez com que a o filme tivesse determinadas características em sua realização? Como um roteiro vira filme? O que se perde e o que se ganha dentro desse processo? Afinal de contas, como um filme é feito?

Ao propor respostas para tais arguições e apontar direcionamento a outras perguntas que podem ser formuladas acerca da realização cinematográfica, o pesquisador desprende-se da obra “acabada” e passar a compreender a sua processualidade, os vários caminhos possíveis dentro de filme que e, por conseguinte uma nova forma de fruição.  Assim, o cerne da pesquisa não passa por uma mera tentativa de analisar a obra entregue ao público, mas sim de compreender os caminhos de sua realização. Além de fornecer embasamento para pesquisas posteriores e de realizar um material crítico que possa vir a contribuir com outras pesquisas do gênero.

Além disso, o estudo acerca da processualidade criativa de uma obra vai além de uma mera curiosidade “voyeurística” sobre o processo, uma vez que tal análise nos revela o porquê de a obra ter chegado até nós da maneira que chegou. Tal análise perpassa a discussão de que não existe uma obra final, mas sim uma obra que foi entregue ao público, sendo esta uma variante dentre muitas possibilidades.

[1] Documento online, não paginado.

[2] O Vivencial Diversiones foi um grupo teatral que existiu em Olinda (PE), entre os anos de 1974 e 1981, com uma proposta cênica bastante revolucionária para os padrões da época, tanto no que diz respeito à estética, quanto aos temas abordados. O grupo era influenciado pela contracultura e pelo tropicalismo, sendo regido por uma espécie de cooperativa e por um processo de criação coletivo. O Vivencial tornou-se um marco de irreverência e transgressão na capital pernambucana daquela época.

[3]Jomard Muniz de Britto é escritor, realizador de filmes em Super 8 e agitador cultural. Participou  intensamente do movimento tropicalista no Nordeste nos anos 70 e manteve estreita ligação com o grupo Vivencial Diversiones.

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