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Críticas

Cinema, Aspirinas e Urubus

A beleza fluída do calor do sertão em uma peça que reverência o cinema

Por Luiz Joaquim | 08.09.2018 (sábado)

– publicado originalmente em 11 de Novembro de 2005 no jornal Folha de Pernambuco

Enquanto o produtor João Vieira Jr. chamava a equipe de Cinema, aspirinas e urubus (2005) para apresentar na pré-estreia do filme em uma sala do Shopping Center Recife naquele ano, seu diretor, Marcelo Gomes recebia, em São Paulo, um título inédito para o cinema brasileiro. Sob o julgamento de um júri internacional, seu longa-metragem de estréia tornara-se o primeiro filme do Brasil a ser escolhido como a melhor obra exibida na Mostra Internacional de São Paulo, que nesta 29ª edição projetou mais de 200 longas.

Já em maio último, no Festival de Cannes (França), Aspirinas também chamou atenção no balneário da Cot d’Azur quando competia pela mostra Un Certain Regard. Lá, foi agraciado com o prêmio Sistema Educacional Francês. Apesar de importantes e de serem de boa serventia ao próprio filme – que será divulgado a partir dali com uma chancela de competência –, prêmios não dizem muito ao público leigo. A estes, vale a emoção que levam para casa ao acender as luzes ao final da projeção.

Em Aspirinas, o que se vê é a rara qualidade no cinema brasileiro em unir a excelência técnica com sua textura entrelaçada a ternura humana. Se é pela comunhão destes dois aspectos que a obra inicia sua carreira com brilho entre os especialista festivais afora, é pela carga tranquila e arrebatadora de humanidade que o filme deverá encantar o público comum.

Marcelo Gomes criou o roteiro (em co-autoria com Karin Ainouz e Paulo Caldas) a partir dos relatos de seu tio-avô Ranulpho Gomes que, tal qual o homônimo personagem do ator João Miguel no filme, foi o Rio de Janeiro fugido da seca. No enredo, o baiano Miguel (também premiado na Mostra SP) é um sertanejo que, em 1942, sonha chegar à cidade grande e vê no alemão Johann (Peter Ketnath) a possibilidade de alcançar o que procura.

Johann, que por sua vez quer distância da Alemanha nazista, vagueia pelo interior do Brasil num caminhão vendendo a, então nova, Aspirina. Para estimular a venda, Johann projeta películas publicitárias em todo rincão onde pára. São nestas sequências, quando a população “namora” a projeção das propagandas a luz da lua, e quando Ranulpho brinca com o projetor 16mm, que Marcelo Gomes registra sua homenagem ao cinema como uma expressão transformadora e de encantamento.

O que já faz de Aspirinas um filme especial na história do nosso cinema, não é apenas a possibilidade de identificar-se e divagar sobre estas almas solitárias e errantes (o que desejam? Para onde vão?) que são Ranulpho e Joahnn. Há também no filme uma provocante proposta narrativa que vai na contra-mão de um tendência de velocidade do atual cinema brasileiro com objetivo de alcançar uma fatia do mercado internacional.

A narrativa tranquila e calma de Aspirinas é, a princípio, pautada pela espacialidade das imagens no Sertão e pela temporalidade das ações entre os personagens e o próprio ambiente que os cerca. Pérolas situacionais assim não estão descritas no roteiro, e vem a tona apenas pela sagacidade da direção – em comunhão com a fotografia de Mauro Pinheiro e com os atores (em particular João Miguel) – em perceber que, se na vida é o tempo e o espaço que ditam a beleza e a tristeza das relações humanas, no cinema é a luz que molda o brilho destas emoções.

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