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Críticas

Crime Delicado

Quando a pedra vira vidraça

Por Luiz Joaquim | 14.09.2018 (sexta-feira)

– publicado originalmente em 30 de Setembro de 2005 de  no jornal Folha de Pernambuco

Pode ser um pouco forte (ou mesmo vaga) a afirmação de que não houve na época nada igual no cinema brasileiro contemporâneo como o que se viu em Crime delicado (Brasil, 2005). Mas é uma afirmação verdadeira. O filme, é o quarto longa-metragem de Beto Brant. Nele, forma e estética se fundem com rara precisão para compor um quadro maior pelo qual se pode ver a vida confrontando a arte, e vice-versa.

A arte, ou os olhos que constantemente lhe observa, está na figura do crítico de teatro Antônio (Marco Ricca, de O invasor), e no pintor José Torres Campanela (o artista plástico mexicano Felipe Ehrenberg). Enquanto Antônio avalia (teatro) com o rigor e sistemática do intelectual distante que é, Campanela cria (uma tela) colocando-se dentro da própria obra. São duas ações intrínsecas a qualquer produto artístico.

Uma ação (a criação), busca a perfeição através da imperfeição. Outra (a crítica) ressalta a imperfeição para suscitar a perfeição. Entre esse dois homens e seus ofícios, se encontra Inês (Lilian Taublib), modelo vivo para os quadros de Campanela, com quem interage na cama, e objeto de desejo de um Antônio em puro estado de desequilíbrio. Um Antônio que, diante de Inês, se descobre um ‘humano’ tão frágil e desprotegido quanto à condição da garota que lhe encanta.

Um Antônio que, como ele mesmo diz, “sempre viveu na terceira pessoa” mas agora está mergulhado em sua subjetividade. É um campo por onde ele não caminha, cambaleia. É um campo onde ele é um deficiente.

Se no terreno do intelecto Antônio é soberano, nas planícies da vida ele é um indigente. Com seu cinema de economia e precisão, Brant, ao som de Schubert, nos dá esse contraponto ao intercalar momentos das peças Woyzeck, Confraria Libertina e Leonor de Mendonça com três diálogos secos e corriqueiros, mas exuberantes de vida, num boteco paulista. Num dos diálogos, o cineasta Cláudio Assis protagoniza uma cena de ciúme até perguntar fatalmente a Antônio: “Quem é você, que não ama?”.

Inspirado num romance de Sérgio Sant’Anna, Crime delicado nos apresenta um Beto Brant amadurecido, tendo composto aqui, magistralmente, um espaço onde a pintura dialoga com o teatro, o intelecto com a emoção, e a arte com a vida. E esse espaço é o cinema.

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