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Críticas

Roma (2018)

Cuarón olha o seu passado, com os olhos do presente, e elabora a grandeza que a sua ‘segunda mãe’ merece.

Por Luiz Joaquim | 16.12.2018 (domingo)

É batata. Quando um filme nos proporciona já em sua abertura uma experiência hipnótica é muito provável que por toda a sua continuidade a alegria para nossos olhos em acompanha-lo será constante até o seu final. Em Roma (Mex./EUA, 2018) – filme escrito, fotografado e dirigido por Alfonso Cuarón, vencedor do Leão de Ouro no 75º Festival de Veneza, e lançado no Brasil nesta sexta-feira (14) pelo Netflix – temos uma minúcia fotográfica atordoante. Entretanto, este não é seu único mérito (e, se fosse, talvez não teria angariado os tantos elogios comovidos que vem conquistando).

Roma é (muito) forte, na verdade, pela comunhão dessa beleza plástica em P&B, constante em cada frame que nos apresenta, com uma história singular e ao mesmo tempo universal. Trata-se da perspectiva de uma empregada doméstica e babá, em 1970, quando Cuarón estava para completar nove anos de idade.

Trazemos a vida pessoa do diretor para esse contexto porque é dela que Roma se alimentou para nascer. Construído a partir de sua memória e do resgate da memória de sua própria babá, Libória Rodriguez, ou apenas ‘Libo’ (hoje com 74 anos, figura com a qual Cuarón nunca perdeu contato), o cineasta mexicano tinha nesse projeto, de mais de dez anos, o desejo de construir algo autobiográfico.

Mais.

De desenvolver uma obra que empenhasse nobreza àquela a quem chegou a chamar de mãe por um período da vida.

Em entrevista à revista norte-americana Variaty, o diretor de E sua mãe também (2001, obra também semi-biográfica) contou que fez centenas de entrevistas até chegar àquela que viveria o papel de empregada doméstica Cleo, a protagonista de Roma. No caso, a atriz Yalitza Aparicio. E, nas palavras dele: “Estava fazendo um filme sobre Libo. A conheci por toda minha vida. Conheço seu valor, seu carinho, seu sorriso. Então, o que aconteceu [ao encontrar Yalitza] foi aquilo que acontece quando se conhece uma pessoa e a gente logo pensa: Por favor, por favor, tomara que ela diga sim!”.

É provável que não por uma coincidência Yalitza é de Oaxaca, o mesmo estado mexicano da origem de Libo.

Mas, ainda que a conheça tão bem, Cuarón precisou retomar longas conversas com Libo para investigar sobre sua vida pessoal e daí partir para a construção de Roma [título homônimo ao bairro na Cidade do México, onde cresceu]. O cineasta conta que, à medida em que crescia e tomava ciência da dinâmica da vida, se dava conta também que Libo não era apenas uma cuidadora que estava ali apenas para lhe trazer carinho e lavar sua roupa.

Libo e Cuarón (crédito Peter Hapak/Netflix): “Ele simplesmente não se comportava”, é a primeira coisa que lembra Libo do pequeno Cuarón.

“[quando se é criança] há uma carga de afeição que borra tudo. Você tem relações utilitárias com quem você ama e você tem medo de parar para enxergar suas fraquezas. Mas, a certa altura, começou a ficar claro que ela [Libo] tinha uma vida”, relembrou Cuarón. E aqui podemos fazer um link diretor com o nosso Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert

Nesse sentido, Roma é um filme nostálgico, que rememora um tempo passado, no caso a infância do diretor, mas por uma perspectiva crítica social de hoje. Dos anos 2010. Essa leitura é fácil de constatar quando entendemos quem é que tem a voz aqui. Quem tem a voz aqui são os menos favorecidos. Ou melhor, as menos favorecidas.

É a empregada doméstica e babá, descendente indígena, que doa o seu amor aos filhos de outra mulher, Sofia (Marina de Tavira), e que por sua vez é esta também outra vítima de um marido ausente, se vendo na condição de ter de criar quatro crianças.

Yalitza Aparicio como Cleo, em “Roma”

REVISITAÇÕES – É bom lembrar que não são poucos os contemporâneos diretores latino-americanos que desejam falar da condição social de seu país nos anos que viveram como criança enquanto regimes ditatoriais regiam a sociedade e, logicamente, afetavam suas famílias.

Da Argentina tivemos Valentin (2002), de Alejandro Agresti, e Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro. Do Chile, Machuca (2004), de Andrés Wood. E, do Brasil, podemos citar O ano em que meus pais saíram e férias (2006), de Cao Hamburger; só para ficar em quatro títulos que exibiram no circuito comercial brasileiro.

Mas não é (apenas) dos pequenos de Cleo e Sofia que Roma quer o olhar (ou deseja o seu olhar). É, particularmente, o dessas mulheres fortes. Numa das falas mais objetivas entre as duas personagens, com Sofia chegando embriagada em casa após entender que seu marido não mais voltará, ela diz, olhando nos olhos de Cleo – cujo pai de seu bebê, ainda no ventre, também a abandonou: “Não importa o que eles digam, sempre estaremos sozinhas!”.

Do ponto de vista cinematográfico, mais propriamente – com fotografia e mise-em-scène em puro estado de graça –,  Cuarón nos dá, no mínimo, duas porradas daquelas de acelerar o coração.

Uma mostra Cleo em trabalho de parto em primeiro plano, e o desdobramento disso em desfoco, em segundo plano – com toda a carga dramática defendida em performance majestosa por Yalitza; e a outra traz Cleo, que não sabe nadar, num plano sequência com ela entrando no mar, que é absolutamente inesquecível.

São planos como este último, simples, mas nunca realizados, sendo ele repleto de consistência e pertinência narrativa, dramática e plástica, que mostram quem é um grande cineasta e quem não é.

E se isso fosse um jogo, Cuarón já seria um campeão, de lavada.

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