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Livro: “Um Copo de Cólera”

Nem sempre a culpa pelo buraco feito na cerca-viva é da saúva.

Por Luiz Joaquim | 26.04.2020 (domingo)

– texto publicado originalmente no Jornal do Commercio (Recife), em 30 de junho de 1999, quarta-feira.

Há exatos dois meses, estreou em São Paulo o filme Um copo de cólera, uma adaptação do livro homônimo de Raduan Nassar, publicado pela primeira vez em 1975. Enquanto o filme – que tem como protagonistas os atores Alexandre Borges e Júlia Lemmertz – não estreia no Recife (coisa que só deve acontecer em agosto), vale a pena (re)conhecer esta desconcertante obra sobre um instante no perturbado relacionamento de um casal que coloca paixão tanto na harmonia quanto no conflito.

Numa leitura que não toma mais que três horas, Nassar nos carrega, com bastante cumplicidade, para o denso universo de seu personagem principal. Um homem ensimesmado que procura não questionar a paixão que nutre pela sua companheira, mas questiona sim a razão de sua relação, discretamente embebecida pela emoção. Não é a toa que a frase que incendeia toda a discussão entre o casal, e que se segue por mais da metade da novela, é assim dita, sarcástica e sumariamente, pela mulher: “não é para tanto, mocinho que usa a razão”.

Borges e Lemmertz, na adaptação cinematográfica

O “não é para tanto” se refere ao estado de total descontrole emocional que seu companheiro é tomado quando descobre a cerca-viva, da chácara onde vive, com um buraco feito por saúvas. Sua reação é tão despropositadamente violenta que acaba por gerar entre o casal um verdadeiro embate de idéias conflitantes. Em “o esporro”, eles começam  a destacar aquela inconveniente perspectiva da personalidade que o outro sempre quis esconder ou procurava não enxergar.

Antes da batalha, na qual confissões inconfessáveis são vomitadas pelo casal, o autor demonstra sua habilidade em nos fazer ver nosso próprio reflexo no que se refere ao quesito sexo. Utilizando uma narrativa na primeira pessoa (sob o olho do personagem masculino) e detalhando pequenas informações geralmente esquecidas numa transa, mas responsáveis pela cumplicidade que pode acontecer entre a história e o leitor, Nassar nos apresenta o perfil do macho de sua novela. Paralelo a tudo isso, ele constrói uma das mais próximas descrição do que pode ser uma paixão.

Veemência. Isso é o mínimo que se pode dizer de todas as palavras impressas nas 85 páginas de Um copo de cólera. A eloquência que o autor coloca nos diálogos de seus personagens – principalmente na segunda parte do livro, a do conflito – encontra força na preâmbulo que se forma na cabeça do personagem masculino.

Quando se observa esse detalhe, levanta-se uma questão na cabeça do leitor. Afinal, tudo que o personagem masculino antecipa mentalmente, dá força e legitima ao que ele fala na seqüência, durante os diálogos. Será que veríamos a mulher com outros olhos se a perspectiva da situação fosse a dela? Felizmente Nassar nós dá uma palhinha, encerrando o livro, com um pouco do olhar feminino.

Entre tantos méritos desse clássico de Nassar (que foi escrito em 1970 e é pertinente ainda hoje) está a revelação que ele nos fornece, quando explica, com sutileza, que nem sempre a culpa, pelo buraco feito na cerca-viva, é da saúva.

Serviço:

“Um Copo de Cólera”

De Raduan Nassar

Editora: Companhia das Letras

85 páginas

RS 12,00

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